Daniela Kresch
TEL AVIV – O vazamento de uma possível decisão da Suprema Corte americana atiçou a já complicada questão do aborto nos EUA. Segundo esse documento, o Supremo – composto atualmente por uma maioria de juízes conservadores – teria decidido reverter uma decisão histórica de 1973 que deu liberdade a mulheres grávidas de fazer aborto sem restrições excessivas do governo. Caso seja realmente adotada, a decisão seria um retrocesso de 50 anos no direito das mulheres sobre seus próprios corpos. Conservadores comemoram, mesmo que pesquisas de opinião garantam que 80% dos americanos sejam a favor do aborto.
Imagino que os conservadores brasileiros estejam de olho em tudo isso e preparando, quem sabe, iniciativas semelhantes. E o que Israel tem a ver com tudo isso? No Brasil, muitos conservadores insistem em carregar bandeiras de Israel em passeatas bolsonaristas, como se o país fosse um modelo a ser seguido em pautas de costumes. O IBI já falou muito sobre esta “Israel imaginária” que seria, na cabeça dessas pessoas, religiosa, conservadora e de direita.
Mas a Israel verdadeira não é uma teocracia conservadora. É uma democracia liberal muito complexa e, acima de tudo, diversa. Há sim influência da religião no Estado porque Israel foi criado como o “Estado Judeu”. Mas “judaísmo” é interpretado como algo mais abrangente do que religião: é sinônimo também de cultura, de povo e de nacionalidade. Achar que Israel segue ipsis litteris a lei bíblica (como um Irã que segue a lei islâmica) é simplesmente mentira.
Depois de toda essa introdução, lamento dizer a esses conservadores que o aborto, em Israel, é uma realidade. O assunto nunca foi muito polêmico, na verdade. Vou tentar explicar como funciona. Segundo a Lei Básica de Israel, o aborto é ilegal. Mas – e esse “mas” faz toda a diferença – qualquer mulher que se encaixe em casos específicos pode suspender a gravidez quando quiser (mesmo depois de 24ª semana) e de graça em clínicas e hospitais dos quatro planos de saúde do país (ou clínicas privadas, pagando).
A única coisa que ela tem que fazer é passar por um comitê (que costuma ser rápido) para obter a autorização. Os comitês são formados por três membros (dois médicos obstetras ou ginecologistas e um assistente social), sendo que um deles precisa ser uma mulher. No caso de uma gravidez após a 24ª semana, o comitê tem cinco membros.
Os casos são:
* Se a mulher tiver menos de 18 anos ou mais de 40 anos
* Se a mulher não for casada ou a gravidez não for do casamento
* Se a gravidez for o resultado de relações ilegais de acordo com a lei penal, ou incestuosas.
* Se a criança for suscetível de nascer com alguma deficiência física ou mental
* Se a continuação da gravidez for suscetível de pôr em perigo a vida da mãe ou causar-lhe danos físicos ou emocionais
Como dá para interpretar por essas “exceções”, quase todos os casos pelos quais uma mulher deseja suspender a gravidez são contemplados. Algo em torno de 98% das mulheres recebem, em geral, autorização dos comitês.
Essas exceções foram introduzidas na lei em 1977. Quer dizer: há 45 anos o aborto é, de fato, permitido em Israel. Com o tempo, os casos autorizados foram aumentando até chegar à lista citada acima. Ah, outro detalhe: as mulheres que optam por pedir autorização para abortar não precisam de consentimento de homem algum (nem do pai de criança) e nem da família (caso seja menor de idade).
Encontrei uma brochura do Ministério da Saúde que explica tudo isso a mulheres jovens. Na brochura está escrito: “Lembre-se: Este é o seu corpo! Ninguém pode decidir por você e forçá-la a dar à luz ou fazer um aborto. Ninguém além de você pode ter 100% de certeza sobre a decisão ‘perfeita’”.
É claro que nem tudo são flores. Há clínicas privadas que fazem aborto sem pedir a autorização legal e isso é realmente proibido. Mas, caso essas clínicas sejam encontradas pelas autoridades, as mulheres não são presas ou julgadas. O crime recai sobre o médico, que pode ir para a cadeia por 5 anos. Em geral, quem procura essas clínicas são mulheres que têm medo ou vergonha de se apresentar aos comitês de autorização.
Algumas vezes, mulheres casadas com menos de 40 anos simplesmente não querem ter um bebê, mesmo que ele não tenha sido concebido de acordo com as exceções à lei. Esses casos são, para mim, a única brecha realmente não contemplada pelos comitês. Outro dia li uma reportagem sobre uma mulher casada que contou ter tido que mentir, dizendo que a gravidez era consequência de um caso extraconjugal, para receber autorização para abortar. Mas todos sabiam – até o comitê – que isso não era verdade. Realmente humilhante.
Mas o que diz a lei judaica? Não sou especialista em todas as vertentes e interpretações do judaísmo, mas pelo que entendo, muitas vertentes religiosas não consideram o feto um ser humano completo. Quer dizer: matar um bebê que nasceu seria assassinato, mas não abortar. A questão é mais a ordem divina da procriação. Ter filhos seria uma obrigação.
No caso de vertentes mais ortodoxas, no entanto, o aborto seria sim um tipo de assassinato. Certamente, eles não aprovam todas as exceções para a realização de um aborto. Acreditam que o procedimento só deve ser realizado no caso de a gravidez colocar a vida ou a saúde da mulher em perigo.
O judaísmo, como visto, não é monolítico. Há judeus que são mais ou menos religiosos. E há ateus, que nem acreditam numa divindade, mas que são judeus num sentido mais amplo: culturalmente e historicamente. Por tudo isso, a questão do aborto em Israel segue uma ideia que acompanha a existência do Estado desde sua concepção por David Ben-Gurion e seus contemporâneos: a ideia de criar uma nação para todos os tipos de judeus.
A maneira de fazer isso é acomodar como possível todos os lados. No caso do aborto, a lei oficial é contrária. Mas as exceções transformam o aborto em uma realidade, na prática. A visão de Ben-Gurion sobre religião e costumes era a de que o Estado deveria controlar a esfera pública, mas não a privada. O caso do transporte público é um exemplo: ele não funciona no Shabat (como querem os religiosos), mas ninguém é proibido de dirigir seu próprio carro no sábado judaico. Ben-Gurion achava isso um arranjo razoável para acomodar todo mundo. Hoje, nem todos concordam com isso (muitos odeiam esse arranjo), mas virou status quo.
Espero que a decisão da Suprema Corte americana sobre o aborto não transforme essa questão – que não é polêmica, atualmente – em mais uma divisão interna por aqui. Israel não precisa de mais divisões. E espero que os conservadores brasileiros entendam, de um vez por todas, que Israel não é essa teocracia que eles tanto imaginam.