Corona: os ultraortodoxos e o desafio da tecnologia às vésperas de Pessach

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Às vésperas do Pessach (a Páscoa Judaica), famílias judaicas em todo o mundo se perguntam: como celebrar a tradicional ceia de Pessach (o Seder) com toda a família em meio ao afastamento social imposto pela pandemia do COVID-19? A resposta para muitos é a tecnologia: conectar os membros da família por aplicativos como Zoom, Skype, WhatsApp, Facetime e outros. O Seder milenar realizado com ajuda do suprassumo da modernidade. Nada mais judaico, pensando bem. 

Para os mais religiosos, no entanto, não é tão simples assim. Os ultraortodoxos (os haredim), avessos à sociedade secular, consideram a internet um perigo porque pode atrair a juventude para um estilo de vida diferente em meio à abundância de informação, fotos e vídeos. A ordem é não se conectar, apesar de que, na prática, a muitos haredim têm smartphones e entram na rede em segredo. 

Mas agora, com o coronavírus, líderes da comunidade ultraortodoxa começam a reconhecer os riscos de manter a Internet fora de suas casas. Após ser diagnosticado com o coronavírus e ser confinado em sua casa, até o ministro da Saúde de Israel, Yaakov Litzman, que é haredi, foi forçado a desafiar as regras estritas dos judeus extremamente religiosos e instalar um computador conectado à Internet para poder se comunicar com outras autoridades do governo. 

A disseminação desproporcional do vírus COVID-19 nas comunidades haredim mostra que a informação ainda não chega a elas como a outros grupos da população. Mas, agora, a web pode salvar vidas. Muitos rabinos haredim estão decidindo permitir a suas congregações escutem um pouco mais as autoridades do Estado atavés de TVs, rádio e sites na internet e que, principalmente, usem Zoom, Skype e outros aplicativos modernos durante o Seder para que as famílias celebrem “juntas”. Isso está acontecendo tanto em Israel quando em comunidades dos EUA e da Europa.

“Eu acho que a sociedade haredi recebeu um alerta. Eles foram educados para demonstrar confiança cega nos rabinos, e posso dizer, como alguém que trabalha no campo da saúde mental, que isso é muito frustrante”, diz o psiquiatra e psicanalista israelense Yoram Yovell. “Ao contrário dos judeus ortodoxos modernos e de algumas das comunidades mais progressistas que cumprem as diretivas das autoridades de saúde, essas comunidades ultraortodoxas são diferentes. Mas eles são muito inteligentes e já estão entendendo o perigo da epidemia e as limitações do isolamento”.

Yovell aponta para as consequências sociais do aumento de casos de coronavírus entre os haredim por causa da inicial recusa dos líderes ultraortodoxos em acreditar nas autoridades de saúde: “O perigo é que há muita raiva desses líderes entre o resto dos israelenses. É um tanto justificado porque o ministro da Saúde demorou muito para adotar o distanciamento social em sua comunidade, deixando que sinagogas ficassem abertas por duas semanas depois que os especialistas disseram era necessário fechá-las. Antigos sentimentos anti-haredim entre os seculares estão vindo à tona. Mas eles precisam abrir os seus corações e renegar essa tendência”.

Quando a crise do COVID-19 passar, a pergunta será: é possível devolver o gênio à garrafa? Quer dizer, os haredim renegarão novamente a internet e outros modos de se conectar às orientações das autoridades? Duvido muito. É só lembrar do que aconteceu com a comunidade ultraortodoxa em Israel durante e depois da Guerra do Yom Kipur (1973). Substitua “internet” por “rádio”. Na época, era pelo rádio que a população recebia notícias sobre a guerra e orientações de como agir. As tropas também eram mobilizadas por transmissões de rádio. 

Os líderes haredim, então, disseram às suas congregações que cada família poderia comprar um rádio, mesmo sugerindo que ele ficasse, na maior parte do tempo, “dentro do armário”. Só seria retirado em horas cheias para ouvir o noticiário oficial.

Mas, com o fim da guerra, ninguém jogou os aparelhos de rádios no lixo. Eles foram ficando. Surgiram noticiários de haredim para haredim, assim como há jornais específicos para eles. O mesmo pode acontecer com a internet. Já há sites específicos para esses judeus extremamente religiosos e, agora, essa tendência deve se acelerar à medida que os líderes entendam que é possível permitir aos jovens – e aos mais velhos – se conectar dentro de sua própria bolha. É possível se conectar, mesmo limitando o conteúdo. E, de quebra, aproveitar o que a rede tem de melhor: notícias fundamentais, trabalho remoto e reuniões familiares.

“Os desafios da Internet para os valores ortodoxos, incluindo a autoridade rabínica e as regras de modéstia, podem ser reconciliados. Muitos sites podem ser veículos para envolvimento religioso contínuo”, escreveu o professor Adam S. Ferziger, da Universidade Bar-Ilan, no jornal The Times of Israel.

É claro, no entanto, que quanto mais abertos ao mundo não-haredi, mais haredim se sentirão atraídos por ele. Mais fontes de informação as novas gerações terão, incluindo as sobre a vida fora das estritas leis ultraortodoxas. É exatamente isso que temem os líderes. Mas eles não podem tapar o sol com a peneira. O mundo é diferente do que era há 200 anos. Adaptar-se a ele pode ser melhor do que ignorar essa realidade. O coronavírus é a prova.

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