Assim que a cantora israelense Netta Barzillai foi anunciada como vencedora da edição de 2018 do maior concurso de música do mundo, o Eurovision (que reúne 41 países europeus ou não, como Israel Chipre e Austrália), a discussão começou. A edição de 2019 aconteceria em Israel, como é de praxe. Mas em que cidade?
“Eu amo o meu país! No ano que vem, em Jerusalém!”, gritou Netta ainda no palco do Eurovision do ano passado, que aconteceu em Lisboa. Parecia, então, óbvio: o concurso deste ano seria em Jerusalém, a capital de Israel, pelo menos segundo os israelenses.
Exultante, a ministra da Cultura, Miri Reguev, conhecida por seu ultranacionalismo, não titubeou em anunciar: “será em Jerusalém, capital indivisível de Israel”. O objetivo seria mais político do que cultural: mostrar ao mundo que Jerusalém é a capital de Israel, mesmo que os palestinos pleiteiem a parte Oriental da cidade como capital (ou a cidade inteira, para alguns). O Eurovision seria o ápice da propaganda israelense diante de 200 milhões de espectadores em todo o mundo.
Mas a ambição da ministra enfrentou diversos obstáculos. A Jerusalém de hoje não é a mesma de 1999, quando Israel também recebeu o Eurovison após vencer o concurso no ano anterior. A transsexual Dana International cantou um número musical que lembrava o filme “Hair” em frente às muralhas da Cidade Velha – algo que, hoje, seria inconcebível. Houve uma breve e pouco séria ameaça de boicote por parte dos ultraortodoxos da cidade por causa dos ensaios durante o Shabat. Mas isso não aconteceu.
A cidade, hoje, está mais religiosa, mais conservadora. Ensaios no Shabat não passariam, entre outros problemas. Jerusalém é, atualmente, uma cidade onde a Parada Gay tem mais policiais do que participantes por causa das ameaças dos ultraortodoxos (em 2015, uma menina de 16 anos foi morta a facadas durante a parada).
O ar na cidade está mais conflituoso. A questão da soberania sobre Jerusalém também está mais latente depois de 20 anos de fracassos em acordos de paz com os palestinos – ou falta de acordos. Em 1999, ainda havia certa esperança de que os Acordos de Oslo, de 1994, poderiam dar certo. Mas o assassinato do ex-premiê Yitzhak Rabin, em 1995, por um extremista judeu e os cada vez mais violentos ataques terroristas palestinos já eram um prenúncio do que viria. No ano seguinte, a Segunda Intifada palestina elevou o nível do conflito.
Jerusalém está mais diferente ainda da cidade que era em 1979, há 40 anos, quando um Eurovision mais humilde aconteceu num centro de convenções em frente à rodoviária da cidade depois que Israel venceu o Eurovision pela primeira vez, em 1978 com o clássico “A-ba ni-bi”. Em 1979, o Eurovision parecia uma versão infantil do concurso atual, com uma plateia de espectadores de meia idade e canções no estilo… anos 1970.
Naquele ano, ainda havia alguma crença de que as coisas no Oriente Médio se acertariam. No ano anterior, Israel tinha assinado um incrível acordo de paz com o Egito de Anwar Saadat (que seria assassinado por isso, depois).
Havia otimismo no ar, cinco anos depois da Guerra do Yom Kippur (1973), e muitos acreditam que Israel venceu também por causa disso. Afinal, não faltam teorias conspiratórias, entre os israelenses, sobre antissemitismo na votação do Eurovision. Quando a Europa está “de mal” com Israel, ninguém vota nas músicas israelenses. Isso, claro, não é verdade, como provou Netta Barzillai. Basta uma boa música, na verdade, para vencer. Mesmo na era do BDS e do premiê Netanyahu.
Quatro décadas depois, o terceiro Eurovision em Israel não acontece em Jerusalém, e sim em Tel Aviv. Um tanto incomodada com isso, a ministra Miri Reguev anunciou que não irá comparecer. Para ela, tinha que ser em Jerusalém. Mas o Eurovision de hoje é, sem dúvida, uma competição gay-friendly e Tel Aviv é considerada uma das cidades mais gays-friendlies do mundo. A Tel Aviv de hoje é a capital da Israel cosmopolita, da Start-Up Nation, do liberalismo e do secularismo.
Israel mudou, Tel Aviv mudou. E, mais do que tudo, Jerusalém mudou. Apesar da intenção de utilizar o Eurovision para objetivos políticos, venceu a ideia de que o concurso tem que acontecer onde será mais apreciado.