Daniela Kresch
TEL AVIV – Lembram da malfadada “Reforma Judicial” (mais para golpe contra a democracia…), que levou centenas de milhares de israelenses às ruas antes dos ataques de 7 de outubro de 2023 e que parecia ter sido engavetado com a guerra? Sim, o golpe voltou. E com uma espécie de “harmonização facial” para disfarçar.
Mas antes, uma contextualizada para lembrar do que se trata. Há exatos dois anos, em 4 de janeiro de 2023, Israel foi abalado por um anúncio chocante e surpresa do então recém-empossado ministro da Justiça Yariv Levin, braço direito do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que havia acabado de voltar ao poder depois de um ano e meio na oposição à frente do governo mais direitista e religioso da História de Israel. Levin, um político cinzento, sem carisma, pálido e jeito de nerd, informou à nação que ele havia decidido fazer uma “reforma judicial” em Israel. Segundo ele, governos de direita estavam sendo castrados por uma Suprema Corte “esquerdista” e “militante”. E que era chegada a hora de cortar as asinhas do Supremo.
O anúncio, que significava nada menos do que uma tentativa de golpe na democracia israelense, levou hordas de israelenses às ruas. Por 10 meses, os protestos contra o golpe se multiplicaram nas maiores cidades do país e o que Yariv Levin mais conseguiu (certamente celebrou) foi dividir o país de uma forma nunca antes vista. Os “biblistas” (fãs de Netanyahu, apelidado de Bíbi) ficaram a favor do golpe e os não-bibistas, ficaram contra.
A ameaça à democracia e a divisão interna são tidos como fatores cruciais para a decisão dos terroristas do Hamas em atacar Israel especificamente em 7 de outubro de 2023, cometendo o pior e mais atroz atentado terrorista contra judeus desde o Holocausto e empurrando Israel para a lama de uma guerra que dura até hoje contra diversos frontes de batalha. Para o Hamas e outros grupos fanáticos, jihadistas e antissemitas, esse era o momento! O momento de um Israel fraco e dividido.
A guerra (ou guerras: contra Hamas, Hezbollah, Irã, Houthis e todo um coquetel de salafistas sanguinários) levou a uma espécie de congelamento das intenções de Yariv Levin. A reação popular contra o golpe já havia levado ao fracasso de vários projetos de lei que ele tentou aprovar. Mas, quem achava que Levin, o cinzento, não carismático e impopular ministro da Justiça, deixou sua obsessão de lado, errou. Ele só estava esperando o momento certo para, de novo, tentar “passar a boiada” contra a Suprema Corte.
Ao invés de aprender com as lições de 2023, Levin aprendeu apenas que, para conseguir o seu objetivo de enfraquecer o Supremo, ele tem que fazer as coisas sem tanto alarde e, se possível, como um disfarce de “consenso” para não enfrentar a oposição popular de antes.
Então, novamente de supetão, fez um novo anúncio nesta quinta-feira, 9 de janeiro de 2025, quase dois anos depois do primeiro. Pegando todo mundo de surpresa, Levin divulgou um vídeo juntamente com o atual ministro do Exterior, Gideon Saar (pronuncia-se “Guideon Sa-ar”), no qual os dois, calmamente e sorridentes, anunciam um “acordo” para amenizar a “reforma judicial” de 2023. Anunciaram uma espécie de “Reforma 2.0, a vingança”.
Pelo vídeo, fica parecendo que dois lados contrários se sentaram para negociar e chegaram a um consenso, com cada lado renunciando a certas coisas para o bem comum. Um acordo justo negociado entre dois rivais, certo? Afinal, a até bem pouco tempo, Gideon Saar era um ferrenho opositor a Benjamin Netanyahu e ao tal golpe judicial de Levin (que, entre outros objetivos, também incluiria, quem sabe, uma lei que salvasse Netanyahu dos 3 casos de corrupção pelos quais está sendo julgado). Saar, ex-membro do Likud, partido de Netanyahu, era um dos críticos mais ferrenhos ao golpe judicial, liderando manifestações contra Levin e Netanyahu.
Pois bem: Gideon Saar traiu todas as suas promessas desde que abandonou o Likud, em 2020, fundando o partido Nova Esperança. Ele prometeu em alto e bom som, em todos os canais de TV, em todos os jornais, em todos os discursos, que jamais se uniria a Netanyahu novamente. Como promessa de político vale menos do que um papel rasgado, em novembro Saar ingressou com seu partido na coalizão de governo liderada por Netanyahu e se tornou ministro das Relações Exteriores. E mais: anunciou que voltará ao Likud.
Se Gideon Saar e Yariv Levin estão novamente juntos no Likud, como podem dizer que a nova reforma no judiciário é um acordo, um consenso, entre rivais? O Likud negociou com o próprio Likud e chegou a um “acordo”? Bonito.
Agora, vamos entender melhor essa nova “reforma judicial” e o suposto “consenso” entre rivais que Gideon Saar qualificou de “histórico”, mas que especialistas classificam como mais uma tentativa de transformar ou Poder Judiciário num palco político, a partir da qual políticos passariam a escolher juízes do Supremo e não mais outros juízes, advogados ou profissionais do Direito.
O novo golpe foca na Comissão de Escolha de Juízes, que Yariv Levin quer muito desmantelar para enfraquecer a influência de profissionais e aumentar a influência de políticos. Atualmente, a Comissão de Escolha de Juízes é composta hoje por 9 membros:
* 2 ministros do governo
* 3 juízes do Supremo
* 1 parlamentar da coalizão
* 1 parlamentar da oposição
* 2 representantes da Ordem dos Advogados de Israel
Para escolher o presidente do Supremo, são necessários 7 votos entre os 9 membros. Yariv Levin não gosta. Não, não. Principalmente porque o próximo presidente do Supremo – que ele fez de tudo para evitar a posse, mas não deve conseguir – será o juiz Yitzhak Amit, de quem Levin não vai com a cara (“muito militante”). A proposta de Levin e Saar, agora é que a Comissão de Escolha de Juízes continue a ser composta por 9 membros, mas com uma composição diferente:
* 2 ministros do governo
* 3 juízes do Supremo
* 1 parlamentar da coalizão
* 1 parlamentar da oposição
* 1 advogado escolhido pela coalizão
* 1 advogado escolhido pela oposição
Quer dizer: Levin e Saar chegaram a um “consenso” (entre aliados!) que significa retirar da Comissão os representantes da Ordem dos Advogados de Israel, substituindo-os por advogados indicados por políticos, um da coalizão e um da oposição. Além disso, seriam necessários apenas 5 votos para uma indicação passar. Justo? Pode até parecer, porque, afinal, a indicações do governo e da oposição. Mas o resultado é o aumento drástico da influência política na comissão.
Fora isso, o novo “consenso” retira o veto dos 3 juízes do Supremo a candidatos indicados a juízes. Ao invés disso, a proposta prevê que nenhum juiz poderá ser aceito sem apoio dos parlamentares da coalizão e da oposição (novamente, a influência de políticos aumenta muito e a dos profissionais cai drasticamente).
Mas o pior dessa nova proposta, segundo especialistas e entidades jurídicas que já se pronunciaram, é uma cláusula que quase passa despercebida nessa reconfiguração da Comissão de Escolha de Juízes. Trata-se da Lei Básica do Poder Judiciário (Hok Yessod: HaShfitá), que difere entre leis normais e as chamadas Leis Básicas (similares às leis constitucionais). Aguentem firme, vou tentar explicar.
Como Israel não tem uma Constituição, há uma dificuldade grande em definir que leis são “básicas” (irrevogáveis) e quais são leis normais, que o Supremo pode derrubar. O que Yariv Levin quer com sua nova “reforma 2.0” é estabelecer que a Suprema Corte não poderá revogar nenhuma “lei básica” aprovada pela Knesset (o Parlamento). E não fica claro quantos votos de parlamentares seriam necessários para aprovar uma lei básica (maioria simples? Seria um escândalo…). A problemática é que nunca foi criado um mecanismo que define o que é “lei básica” e o que não é. Atualmente, é só o autor definir uma proposta de lei como “básica” para ela ser considerada assim.
O temor de entidades jurídicas é o de que, caso consiga que o Supremo seja incapaz de revogar leis básicas, qualquer governo populista ou extremista (como o atual) possa legislar leis que classifique como “básicas” asi no más. Teoricamente, digamos que o governo Netanyahu decida que a minoria árabe não poderá mais votar em eleições legislativas e classifique esse projeto como “lei básica”? A Suprema Corte estaria com as mãos atadas para julgar se isso é constitucional, se essa medida segue o que a Declaração de Independência de Israel estabelece (igualdade entre todos os cidadãos). É um exemplo teórico, mas amedrontador.
É necessário repetir algo que já escrevi muito neste espaço: a Suprema Corte é um poder fundamental na democracia israelense. Israel é parlamentarista com apenas uma casa (a Knesset), que comporta 120 parlamentares, entre eles o primeiro-ministro e seus ministros de Estado. Quer dizer: Legislativo e Executivo, por aqui, se confundem. O primeiro-ministro é membro do Parlamento. Ele legisla e executa. É por isso que um Judiciário forte e apolítico é fundamental para limitar o poder do governo, de qualquer governo.
Yariv Levin odeia isso. Odeia que um premiê não possa fazer o que quiser, quando eleito. Odeia que, se a Knesset legisla algo que o governo quer legislar, vem o Supremo e diz que é inconstitucional. “Que absurdo!”, pensa ele. “Somos o governo eleito, temos que ter o poder de fazer tudo o que quisermos”.
Mas não é assim que as democracias funcionam. E é assim que as democracias morrem, como temos visto em tantos lugares pelo mundo.
Por enquanto, os oposicionistas estudam a proposta para ver o que ela realmente sugere. Aliás, eu não sou advogada ou especialista em juridiquês, portanto posso estar cometendo erros neste texto. O que sei é que, em breve, saberemos como a sociedade civil israelense irá reagir a tudo isso. Apesar de todos os pesares, de toda a pressão, das guerras, da condenação internacional a um país que luta por seu futuro e tenta redefinir seus valores (errando muito, mas acertando também), Israel tem uma sociedade civil forte e ativa. Nada aqui passa fácil. Mas é preciso estar de olho.
Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.
(Foto: Flickr/Adam Cohn)