Quo Vadis Israel? (Para onde vai Israel?)

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Avraham Milgram*

Essa é uma pergunta sem resposta e não apenas pela recomendação dos sábios judeus, חז”ל (chachameinu zichronam levrachá) aos irrefletidos, pela qual “a profecia foi dada aos tolos”, mas principalmente, porque os problemas agudos que dizem respeito à existência e ao futuro do Estado de Israel continuam em aberto, complexos e alguns insolúveis, em contraposição à estratégia iraniana, que tem como objetivo destruir Israel. Esta é visível e pungente. Há anos que os aiatolás vêm armando uma infraestrutura de mandatários assassinos para numa ação conjunta eliminar o Estado de Israel. Para isso, eles estabeleceram um cinturão de fogo ao redor de Israel: Hezbollah ao Norte, Hamas ao Sul, guerrilheiros xiitas na Síria, terroristas na Cisjordânia e os Houthis no distante Iêmen, que contribuem para a “causa” além do seu objetivo principal no combate contra a Arábia Saudita sunita.  

No 7 de outubro de 2023, o Hamas surpreendeu a todos, inclusive aos seus patronos no Irã, ao não agir de acordo com seu timing estratégico desencadeando o trailer do delírio genocida. Essa não foi a primeira vez que Israel se viu ameaçado. Perigos maiores ocorreram em 1948 e às vésperas de junho de 1967. Israel soube confrontar perigos existenciais apesar das negligências imperdoáveis, à exemplo de 1973 e de outubro de 2023, que todavia não sabemos como terminará.

Piores são os processos políticos e sociodemográficos inerentes à sociedade israelense que ameaçam sua existência face a incapacidade de seus cidadãos de coabitar na mesma casa. Seus componentes socioculturais, religiosos e étnicos se odeiam e se desgastam numa kulturkampf sem fim. As elites econômicas, acadêmicas, culturais e científicas anseiam por um estado liberal e democrático à luz dos princípios estabelecidos na Carta de Independência de 1948. Os religiosos ortodoxos, pouco menos que 20% da população, além de sua postura antissionista, ambiciona transformar Israel num estado teocrático. Os cidadãos árabes, que constituem 20% da população, sonham em viver num país em pé de igualdade e se integrar na sociedade majoritária, ideal que a cada dia que passa se torna mais complexo, para não dizer impossível. Os religiosos nacional-sionistas (perdão pela associação linguística), extremamente ambiciosos, afoitos e intolerantes, atualmente no poder, não escondem sua húbris para impor a supremacia judaica sobre as demais parcelas da população. Sem esquecer os fascistas antiliberais e antidemocráticos que se encontram aos montões nos partidos de direita e extrema direita responsáveis em grande parte pelo que ocorre no país. 

Este quadro social nada promissor, e não as adversidades externas, é o que coloca Israel em risco de vida. Por essas razões, se questiona estarrecidamente o que aconteceu em Israel, e por quê. Como um Estado milagroso, bem-sucedido e afamado como a Start-up Nation, se transformou numa sociedade desregrada, polarizada ad náuseam, egoísta, ameaçada, acossada pelo medo e fatalismo jamais liberto da psiquê judaica?  

Os judeus e o Ocidente ficaram pasmados com o surgimento do Estado de Israel. Parecia que os infortúnios pertinentes à condição do exílio haviam terminado. O estabelecimento do Estado de Israel cumpriu a inusitada proposta sionista que aspirava transformar uma seita religiosa dispersa pelos quatro cantos do mundo em uma nação autônoma dona do seu destino. A ideia era arrebatar as funções creditadas ao Messias para delegá-las ao judeu mundano para se autoemancipar – renegar a expectativa da salvação divina. Assim, de forma arrojada, os sionistas assumiram um papel transcendente com o propósito de rearranjar sua condição humana inferior para outra moderna, soberana, secular, igualitária com tudo que merece em termos de território, língua, cultura, meios de produção e defesa. São conceitos que nada têm a ver com colonialismo conforme alegam os palestinos e a extrema esquerda. Eles derivam da complexidade das contradições impostas aos judeus na modernidade, da vontade de se autoafirmar e libertar-se da condição de minoria discriminada e perseguida. Por esta lógica, mutatis mutandis, a autoafirmação do povo palestino é legitima e justa da mesma forma. Ambos os movimentos de libertação nacional não só não se contradizem como poderão e deverão se complementar para o bem comum de ambos os povos.  

Israel, logo após o doloroso parto, cresceu com uma espécie de atração especial – jovem, inovador, revolucionário, energético e sui generis. O kibutz era único no mundo, cultivar terrenos áridos no deserto uma afronta à natureza, absorver milhões de imigrantes refugiados, vomitados para fora de uma Europa antissemita e de países árabes em quantidades que superavam sua própria população, era definitivamente assombroso, apesar das sequelas que ficaram pelo caminho, e não foram poucas. Por essas e outras razões, Israel parecia e era de fato diferente de outros países, despertava respeito, era admirado e enchia os judeus de orgulho.

O cotidiano para seus habitantes era penoso. Os governos trabalhistas buscaram forjar uma identidade nativa sabra de acordo aos desígnios de David Ben Gurion e do partido Mapai. Era preciso instrumentalizar os mecanismos estatais na educação, no serviço militar, na cultura, na saúde pública, na administração e no trabalho para amalgamar as diferenças num todo homogêneo. Ben Gurion acreditava piamente no estadismo, política que impregna tonalidades bolcheviques, mas naqueles anos e circunstâncias era um mal necessário para construir uma nação constituída por centenas de milhares de judeus que não imigraram por razões sionistas. 

Com o passar do tempo, a resiliência às políticas estatais resultou ser mais forte que o estadismo de Ben Gurion. No decorrer dos anos 1960, o espírito pioneiro arrefeceu. Israel se ocidentalizava, traços da cultura americana (música, danças, fumo) se faziam sentir nas ruas de Tel Aviv. Sobreviventes do Holocausto se autoafirmaram, o regime militar coercitivo contra a população árabe foi revogado e jovens orientais marginalizados e pauperizados protestavam por seus direitos. Amos Oz, Nathan Zach, Yehoshua Kenaz, A.B. Yehoshua e outros escritores desafiavam com seus livros a narrativa coletivista geracional de 1948. O país se transformava lenta e gradativamente num processo que abria caminho às individualidades e diferenças. 

A Guerra dos Seis Dias e suas consequências não só catalisaram esse processo como se transformaram no divisor das águas da região em geral e da sociedade israelense em particular. Em poucos anos, a política para lograr a paz em troca de territórios conquistados tornou-se obsoleta. Veio a guerra do Yom Kipur, a derrocada dos trabalhistas, a chegada de Menachem Begin e a direita ao poder e, acima de tudo, o câncer nacionalista violento e racista que hoje ninguém, tampouco a oposição, se manifesta contra. Me refiro ao ativismo irredentista extragovernamental constituído por grupos religiosos colonizadores, a princípio excêntricos e ilegítimos, que hoje decidem o destino do país. 

Há 50 anos, eles não passavam de um grupo marginal, esotérico, hiperativo, antinômico e messiânico, convicto de que o sionismo, o estabelecimento do Estado, as vitórias nos campos de batalha e a conquista dos territórios vieram para confirmar a veracidade das profecias bíblicas e a vontade divina. Seu ethos e doutrina alternativos, místicos e desconectados da História nos conduziram inevitavelmente a confrontar o Estado de direito, os governos e as políticas normativas. Pouco a pouco, o mecanismo estatal, o exército e a justiça demonstraram ser coniventes com seus atos e objetivos. Os grupos mais radicais dos colonizadores, que não são poucos, tornaram-se focos de tensão social e política dentro de Israel e principalmente nos territórios ocupados, onde tratam por todos os meios de legitimar o ethos da supremacia judaica racista. 

Convictos que o Estado lhes pertence, escarram contra tudo e todos, inclusive nas famílias dos reféns que se encontram em Gaza. Seus líderes, que hoje ocupam pastas ministeriais de primeiro escalão, lhes possibilitam implementar limpezas étnicas de comunidades palestinas, expropriar terras, roubar gado miúdo e praticar atos violentos e assassinos. Isto vem de longa data e o “nada de novo na fronte” se radicaliza dia a dia, além de exigir gastos exorbitantes e imensas forças militares necessárias em outras frentes. 

Contudo, a gota d’água ocorreu com a tentativa do golpe judicial que Bibi Netanyahu provocou com o apoio tácito dos ultraortodoxos, nacional-sionistas e fascistas do seu partido. A tragédia atual de Israel deriva do assalto brutal dessas correntes políticas contra a sociedade civil, o judiciário, a democracia e os cofres públicos. O campo nacionalista-religioso reacionário pretende eliminar as elites culturais, econômicas, acadêmicas e militares que formam o campo liberal e democrático de Israel. E o que ocorreu e ocorre em Israel desde janeiro de 2023, demonstra a insustentável leveza pela qual é possível destruir uma casa no sentido figurado e real. Sob este prisma, Israel tornou-se irreconhecível, insuportável e talvez insustentável. 

Israel descarrilhou no âmbito militar, econômico, institucional e nas relações externas pela ação de fanáticos ineptos, irresponsáveis, corruptos e amorais que governam o país. Serão necessários anos para corrigir seus imensuráveis erros e prejuízos. 

Os últimos meses podem levar a um desespero e aprofundar o pessimismo à vista das tensões inerentes de uma sociedade multi-identitária extremamente intolerante e pouco solidária. Por outro lado, talvez, após o cataclisma, possamos encontrar meios para assegurar o respeito pela diversidade através de mecanismos que evitem a imposição cultural, social e política de uns sobre outros. O termo apropriado é democracia, ipsis litteris

Israel será um país civilizado se houver igualdade entre judeus e árabes, se o judiciário for autônomo no cumprimento dos direitos civis e humanos de todos, cidadãos ou não. Para esses e outros objetivos, Israel necessita de uma Constituição que estabeleça, entre outras coisas, a separação entre Estado e religião. Há muito percebemos que a força física e militar tem seus limites. Se Israel pretende assegurar seu lugar na região onde se encontra, deverá apostar com a mesma intensidade em acordos de paz com o mundo árabe e muçulmano, o que implica abandonar anseios colonialistas e o domínio sobre os palestinos.             

*Avraham Milgram é historiador emérito do Yad Vashem  

Esse texto não reflete a opinião do Instituto Brasil-Israel.
Foto: Rawpixel                

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