Daniela Kresch
TEL AVIV – Quando três ex-refém israelenses, Almog Meir, Andrey Kozlov e Shlomi Ziv foram resgatados da casa de sequestradoress palestinos no dia 8 de junho, um detalhe chocou muita gente: eles estavam detidos na casa do jornalista Abdullah Al-Jamal, 36 anos, autor de um artigo publicado pela rede de TV Al Jazeera, do Catar. Segundo informações do Observatório Euro-Med dos Direitos Humanos (e publicadas pelo site israelense YNET), Al-Jamal também publicava artigos quase diários em inglês no “Palestine Chronicle” desde o início da guerra.
Vou ser honesta aqui e escrever que não sei todos os detalhes. Aliás, jornalistas honestos deveriam sempre admitir isso. Muitas vezes, nós lemos e fazemos “copy-paste” de informações online – nem sempre por má-fé, mas sim pela incapacidade total de estar em todos os lugares ao mesmo tempo e apurar os fatos com nossos próprios olhos.
Dito isso, digamos que Abdullah Al-Jamal, que foi morto na operação de resgate dos reféns, realmente contribuísse com a Al Jazeera. Certamente, o fato de ele e sua família manterem, em sua casa em Nuseirat, no Centro da Faixa de Gaza, jovens refens israelenses, brutalmente sequestrados no dia 7 de outubro de 2023, é de franzir a testa de qualquer um. O que faziam eles na casa de um “jornalista”?
Nós, brasileiros, somos ensinados que jornalistas são pessoas que têm como objetivo relatar os fatos. Pensamos, quem sabe, em Bob Woodward e Carl Bernstein, que revelaram o escândalo de Watergate, em 1974. Ou, quem sabe, na Patrícia Campos Mello, que desvendou financiamentos ilegais à campanha de Jair Bolsonaro em redes sociais. Mas serão todos os jornalistas desse calibre?
Antes de responder isso, temos que entender coletivamente o que significa a palavra “jornalista”. Vem comigo nesta jornada. Vai dar certo.
Jornalistas podem ser repórteres (que coletam as informações de fontes primárias e escrevem o texto base), fotojornalistas ou cinegrafistas (que fazem imagens da cena e dos personagens), redatores e editores de imagem (que compilam essas informações), editores (que decidem onde e como o texto final e as imagens serão publicadas), ou âncoras (que leem as informações no caso de rádios, TVs ou canais na internet).
A rigor, esses jornalistas não devem expressar opiniões pessoais. Isso é papel dos colunistas e articulistas (que dão opinião pessoal e podem ser profissionais de outras áreas) ou editorialistas (que escrevem a opinião coletiva do veículo de informação).
Em suma: o papel do jornalismo é informar os fatos (reportagens/imagens) ou influenciar (artigos/colunas de opinião).
Entendido? Pois é, não é tão simples assim. Infelizmente, a noção de jornalismo acima, que pode ser básica ou até óbvia para nós, não é a mesma de muitas comunidades pelo mundo (em países não democráticos, conservadores e extremamente religiosos, por exemplo). Fora isso, a realidade do jornalismo atual às vezes requer a utilização de outros tipos de colaboradores, que nem sempre se regem pela noção do jornalismo que exemplifiquei acima.
Em alguns locais, a ideia de jornalismo como observação dos fatos sem viés ideológico ou manipulação da informação não existe. É, na verdade, quase inconcebível. Isso porque a informação seria, em sua base, uma arma ideológica para controlar as massas. Então, nesse sentido, a função do repórter seria a de relatar os acontecimentos sob um prisma ideológico, com objetivo de criar uma narrativa, uma realidade específica.
Claro, não podemos ser desonestos ou ingênuos. Repórteres da forma que nós entendemos também não são sempre neutros (há exemplos de muitos deles no Brasil, recentemente). Primeiro porque “neutralidade” não existe. É um conceito utópico. Todos nós nascemos e crescemos em meio a um contexto pessoal, familiar e social específico. Por mais que queiramos fugir desse contexto, é impossível. Todos nós temos ideologia, opiniões, valores.
Mas o jornalista profissional, como nós entendemos no Brasil, busca (ou deveria buscar) a verdade e a neutralidade, mesmo que utópicas. A intenção da busca já vale algo, mesmo que seja impossível. Mas há “jornalistas” que nem tentam buscar a verdade. Eles encaram seu trabalho como oportunidade de passar uma mensagem específica, algo parecido com o nosso conceito de propaganda.
Em geral, esse segundo tipo de “jornalista” não é um profissional com diploma universitário reconhecido por autoridades locais. Para quem não sabe o que é isso, dou uma experiência pessoal: eu estudei Jornalismo na PUC-Rio por quatro anos. QUATRO anos. O Jornalismo que aprendi é quase uma ciência. Há regras. Há métodos de apuração, de escrita, de edição. Se você é um bom repórter, você apura os fatos concretos e os relata da melhor maneira possível. As opiniões ficam para os articulistas e editorialistas.
Se o jornalista não tem um diploma – o que é cada vez mais comum também no Brasil, já que, erroneamente, muitos pensam que aprender Jornalismo é balela –, fica mais fácil para ele ignorar as fronteiras entre fato e opinião. E as fronteiras entre jornalismo e propaganda.
Isso fica ainda mais complicado no mundo atual, em que as empresas de comunicação – quase todas com problemas financeiros – buscam soluções mais baratas para publicar informações. No caso de notícias internacionais, há ainda outros agravantes. Às vezes é preciso buscar dados em locais distantes, caros ou perigosos.
Aí entram os fixers e os “jornalistas” freelance. Fixers são produtores locais que acabam servindo como guias e intérpretes de correspondentes estrangeiros. Falam a língua local e conhecem os caminhos. Os “jornalistas” freelance também são pessoas locais que colaboram ad hoc com empresas de comunicação, vendendo reportagens a quem pagar (ou pagar mais). Eles são contratados quando um jornal ou uma TV não têm dinheiro ou tempo suficientes para enviar uma equipe completa ao local da notícia. A melhor solução é buscar “profissionais” locais que estejam imediatamente disponíveis.
Mas a maioria deles não se enquadra no molde convencional de jornalistas. Os fixers, tidos como guias indispensáveis na navegação em terrenos desconhecidos, podem servir como manipuladores da informação, exercendo o poder de controlar a narrativa. Eles têm um íntimo conhecimento dos contextos e das personalidades locais que pode ser explorado para selecionar fontes, suprimir vozes dissidentes, traduzir entrevistas de forma enviesada ou manipular eventos para se adequarem a agendas predeterminadas. Em regiões assoladas pela corrupção ou por conflitos, eles podem ser cúmplices na perpetuação da desinformação.
O mesmo acontece com os “jornalistas” freelance – tanto repórteres como fotojornalistas/cinegrafistas. Muitas vezes, eles são contratados rapidamente e por preços baixos, sem checagem profunda de seus antecedentes ou visões de mundo. Eles não têm supervisão editorial da mídia para as quais trabalham. Podem escrever quase o que querem ou até mesmo, no caso do fotojornalismo, criar imagens “fake”.
Isso abre a porta a lapsos éticos. Na busca incansável por emprego, os colaboradores locais muitas vezes sacrificam a precisão pela conveniência e a ideologia. Chamam a atenção ao distorcer a realidade. São conhecidas as fotos de locais bombardeados com bonecas ou brinquedos em primeiro plano. Alguns fotógrafos levam brinquedos de casa e os colocam na cena deliberadamente para criar um contraste entre “infância” e “destruição”, buscando uma resposta emocional que demonize o lado que atacou e humanize quem foi atacado. Claro que nem sempre as fotos são ensaiadas assim. Mas tem muitas que são.
Fechar os olhos às realidades do jornalismo não tradicional é ignorar essa complexidade toda. Embora os fixers e os “jornalistas” freelance sejam, às vezes, a solução mais rápida – e mais barata – na cobertura de um evento internacional, eles podem não aderir às normas jornalísticas tradicionais, como a transparência e a busca dos fatos sem nuances ideológicas. Seu impacto na formação do discurso público e na formação das percepções não pode ser subestimado. Para mim, as mídias que os contratam se tornam cúmplices na manipulação dos fatos e na propagação de falsidades, de desinformação e de agendas preconceituosas.
Agora voltemos ao caso do jornalista Abdullah Al-Jamal, em teoria, colaborador da Al Jazeera, que manteve os três reféns em sua casa. Não sei se o espaço foi conceiddo a ele por sua posição estratégica (estar em Gaza, onde jornalistas estrangeiros quase não podem entrar). Também não sei o quanto Abdullah Al-Jamal era regido pela rigidez da ciência jornalística ou se concebia o seu trabalho como a divulgação dos ideais anti-Israel do Hamas. Pelo pouco que sei sobre o que ele escrevia, seus textos pintavam o Hamas como um grupo de resistência anticolonialista, essa ladainha que a gente escuta nas universidades americanas. Talvez tenha sido brainwashed pelo sistema educacional de Gaza, que pinta israelenses como demônios. Talvez tenha sido pressionado a escrever só o que o Hamas concorda sob o risco de morrer. Talvez concordasse com a visão do Hamas de aniquilar Israel. Não sei.
Só sei que é no mínimo ingenuidade – e no máximo má-fé – de empresas de comunicação internacionais definir como “jornalistas” pessoas que claramente têm um viés específico em prol ou contra pessoas ou grupos. É claro que pessoas locais com computadores, gravadores e câmeras são bons ajudantes de apuração. Mas um editor honesto de um veículo honesto deve considerar os riscos e tentar mitigar o viés. E digo isso também em relação a fixers ou jornalistas freelancers israelenses – alguns deles também pautados mais por ideologia do que pela busca dos fatos.
Da Al Jazeera, claro, eu nunca esperei nada diferente. Trata-se de um canal de TV criado com base numa visão enviesada de Israel. A narrativa da Al Jazeera não é muito diferente da do Hamas ou de quem grita “from the river do the sea”. Então, ter Abdullah Al-Jamal como colaborador não é surpresa. O que me surpreende é que, em 2024, na era-redes sociais, fake news e afins, as pessoas ainda acreditarem que, quando se diz que alguém é “jornalista” ou “repórter”, se trata necessariamente de um profissional comprometido com a verdade e os fatos. O fato de alguém ser apresentado como jornalista não o transforma em Bob Woodward ou Patrícia Campos Mello.
Em suma: Abdullah Al-Jamal pode ter sido classificado como “jornalista” pela Al Jazeera. Mas certamente isso não o impedia de conviver (esconder?) com uma refém sequestrada pelo Hamas em sua casa. Se considerarmos que sua noção de jornalismo era a de divulgar a ideologia do Hamas, não havia nenhuma incongruência nisso.
Esse texto não reflete a opinião do Instituto Brasil-Israel.
Foto: Flickr/ European Parliament