O bullying de uma cantora e a independência de Israel

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Daniela Kresch

TEL AVIV – Uma pergunta rude feita a uma jovem israelense de 20 anos resumiu, para mim, boa parte da história do Estado de Israel, que completa 76 anos de independência este ano, em meio a seu momento mais triste e desesperador – o clima no país é de velório, de profunda amargura e preocupação em relação ao futuro. A pergunta foi feita à cantora Eden Golan, que representou lindamente Israel no Eurovision Song Contest – uma extravagante e caricata competição de música na Europa cujo lema é “unir países através da música”. Quem perguntou foi um jornalista polonês durante a coletiva de imprensa após a classificação de Israel para a final do concurso. 

“Você considerou que, estando aqui, coloca em risco os outros participantes e o público?”, perguntou o jornalista à moça.

Golan não fez muxoxo algum e respondeu com classe (afirmou que confiava na organização do evento). Mas, a resposta foi menos importante para mim do que a pergunta. 

Vamos analisar a indagação do jornalista da Polônia, ok? Ele sugeriu que: 

1) Eden Golan, a cantora de 20 anos, foi irresponsável e deveria ter pensado duas vezes antes de participar da competição que Israel participa desde 1973; 

2) O problema seria o risco aos “outros participantes e o público”, não a ela;

3) Se ocorresse alguma violência maior ou um atentado terrorista contra a própria Eden Golan no local da competição e, Deus me livre, respingasse nos “outros”, a culpa seria da própria Eden Golan. Afinal, quem mandou ir? 

Ao assistir essa cena patética, me veio à mente o famoso filme da atriz Jodie Foster (“Os acusados”, de 1988), no qual ela passa por um estupro coletivo em um bar e é acusada de incitar os estupradores. Ela era a culpada. Afinal, estava de minissaia, estava dançando, estava bêbada… Ah, queria o quê? Que mandou ir a um bar de minissaia? Virou ímã de estupradores e incitadores de estupro. 

E o escritor Salman Rushdie? Quem mandou escrever “Os versos satânicos”, um livro que o regime dos aiatolás considerou blasfemo? Ele também é culpado pelos anos de perseguição e por ter perdido um olho num atentado cometido por um fanático, em 2022. 

A pergunta do jornalista polonês repete essa lógica enviesada – mas com agravantes. Os Israelenses não só são culpados por atrair terroristas que querem matá-los como, segundo o jornalista polonês, colocam em risco quem está próximo a eles. A bem da verdade, seria melhor se Israel nem existisse. Assim o mundo seria mais seguro, já que terroristas não atacariam inocentes que estivesse no caminho de alvos israelenses. Bem racional.

Ao invés de condenar e tentar lutar contra os terroristas que querem matar pessoas pelo mundo, o mundo condena essas pessoas (israelenses, no caso) por viajarem pelo mundo. Ou por existirem. É mais fácil isolar a vítima do que lutar contra os algozes. Requer menos energia. Então, mulheres que vistam saias compridas, escritores que não melindrem líderes religiosos. O mundo fica mais apaziguado assim.

É por isso que considero a pergunta do jornalista polonês uma boa indicação de como o mundo encara Israel desde 1948 – como uma ameaça à paz mundial por apenas existir. A criação de Israel não foi aceita pelo mundo árabe-muçulmano (e não quero entrar aqui nos motivos, é complexo) e, desde então, parte dele acredita que é preciso destruir esse país. Destruí-lo como ideia e também fisicamente, matando seus habitantes – principalmente a maioria judaica. Israel, por sua vez, quer continuar a existir. Não são todos os vizinhos árabes que acham isso, mas o suficiente para os israelenses serem traumatizados e paranoicos com sua segurança e a de seus filhos.

Desde o dia em que declarou sua independência, em 14 de maio de 1948, Israel foi alvo de guerras convencionais, terrorismo camicase de homens-bomba, revoltas violentas, foguetes, mísseis e etc. Milhares de israelenses foram mortos dentro de Israel. E fora do país, israelenses e judeus também foram alvos de atentados. Olimpíada de Munique de 1972, o sequestro de Entebe e de outros aviões e as explosões na embaixada de Israel e na Amia, na Argentina, são apenas alguns dos exemplos.

O que pensam pessoas como o jornalista polonês do Eurovision? A culpa é de Israel, por existir. Não da incapacidade ou da inflexibilidade de seus vizinhos do Oriente Médio de cogitar aceitar que Israel exista e conviver pacificamente (tantos outros países foram criados em terras disputadas ou até mesmo invadidas e, apesar de todo o passado, não enfrentam algo assim!). Se o país é atacado por exércitos, militantes paramilitares ou por homens-bomba, a culpa é dele. 

E pior: Israel está colocando o mundo em perigo. Por causa de Israel (e da Eden Golan, a cantora representando do país no Eurovision), a violência pode respingar nos “outros”, afetar o resto do mundo. Shame on you, Israel.

A atual guerra em Gaza é mais um exemplo de tudo isso. Israel foi invadido por turbas de terroristas fanáticos (que não estão interessados em “Dois Estados para dois povos”) em 7 de outubro de 2023, que trucidaram, violaram e sequestraram mais de 1.200 pessoas em poucas horas. Mas o próprio Israel é o culpado de ter sido atacado. É o “contexto”: Israel não tinha direito de existir em 1948 e continua sem esse direito, 76 anos depois.

Israel também é, óbvio, culpado de retaliar com força. Aliás, não deveria se importar com a segurança de seus cidadãos e construir um sistema de defesa e de ataque robustos. Não deveria tentar acabar com o Hamas. Deveria deixar seus cidadãos morrerem calados e em silêncio, para não incomodar o mundo.

Não ignoro e nem relevo o número de mortos civis palestinos em Gaza (cujo número não é certo). E também não tenho como garantir que erros não foram cometidos pelo exército de Israel, apesar de acreditar que não há e nunca houve intenção por parte de soldados de matar indiscriminadamente civis e sim destruir a infraestrutura de túneis subterrâneos do Hamas construídos embaixo das cidades propositadamente para usar esses civis como escudos humanos. Tudo isso é terrível. 

Também não ignoro e nem relevo os problemas internos de Israel, seus extremistas, líderes nacionalistas raivosos e religiosos cegos (que jogue a primeira pedra o país que não os tem) e seu primeiro-ministro populista e egocêntrico (quem não conhece esse tipo de político?). Gostaria de vê-lo fora do poder. A maioria dos israelenses também. Gostaria que essa guerra acabasse, que os 132 reféns voltassem, que o Hamas se escafedesse e que os palestinos encontrassem líderes que amem seus cidadãos e queiram o seu bem.

E gostaria que uma cantora jovem não fosse assediada por jornalistas – e colegas cantores cínicos, que fizeram o maior bullying da história do Eurovision com ela – por participar de uma competição de música. Eden Golan saiu do Eurovision como vencedora. Ficou em 5º lugar entre 37 países, depois de ter recebido o segundo maior número de votos do júri popular.

Essa votação popular em massa me deu esperança de que, ao contrário de fanáticos, dos haters, de gente woke e dos ignorantes, exista gente capaz de identificar o viés absurdo de quem culpa a vítima para apaziguar seus agressores. 

Este texto não reflete necessariamente a visão do Instituto Brasil-Israel.

Foto: ReproduçãoYoutube

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