A ação terrorista do Hamas contra Israel é um ataque ao mundo democrático

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Augusto de Franco

Para analisar o conflito atual entre Israel e o Hamas é necessário fazer preliminarmente algumas distinções.

Em primeiro lugar é preciso distinguir regime político de governo. O regime de Israel é uma democracia liberal: a única do Oriente Médio, ilhada num mar de dezesseis autocracias. O governo atual de Israel não é democrático: Netanyahu é um populista-autoritário que tenta solapar as instituições do regime democrático israelense. 

O governo populista de extrema-direita de Netanyahu é contestado pelas forças políticas democráticas de Israel. Ele tenta dar a volta por cima aproveitando a guerra. Mas deverá ser responsabilizado por ter deixado o país vulnerável ao ataque terrorista do Hamas.

O regime político de Gaza é uma ditadura. Sim, Gaza já é um Estado ou um proto-Estado autocrático (na medida em que tem governo). Assim é tratado por conhecidos institutos que monitoram a democracia no mundo. Uma prova disso é que a Palestina-Gaza comparece nos rankings da Freedom House (como regime Não-Livre) e do V-Dem (como Autocracia Fechada, quer dizer, não-eleitoral). No V-Dem está entre os trinta piores colocados do mundo no ranking de 2023. O governo de Gaza é controlado por uma organização terrorista chamada Hamas. A última eleição ocorrida em Gaza foi há dezessete anos. A partir daí o Hamas aprisiona e oprime os palestinos que vivem em Gaza.

Um gráfico comparativo da evolução dos índices de democracia liberal no Oriente Médio, feito a partir da base de dados do V-Dem (2023), é esclarecedor (e assustador):

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Em segundo lugar é preciso distinguir os governantes dos governados. Os teocratas Aiatolás e o Exército dos Guadiães da Revolução Islâmica não são os iranianos. O ditador Canel não é povo de Cuba. Netanyahu não é a população de Israel. Os terroristas do Hamas não são os palestinos de Gaza. 

Nem quando são eleitos legalmente os governantes podem ser confundidos com os governados. Trump, quando governava, não era a população dos EUA. Bolsonaro nunca foi o povo brasileiro, assim como Lula (embora queira ser a sua síntese) também não é.

Em terceiro lugar é preciso perceber que os critérios para caracterizar um regime político como democrático são internos (liberdade, eletividade, transparência, alternância, legalidade e institucionalidade). No plano internacional não fazem sentido, pois que nesse âmbito (do conjunto das nações) não vige a democracia e sim o equilíbrio competitivo (a realpolitik das relações de força). Se tomarmos a política externa como critério, nem os EUA, nem Israel, nem mesmo a Atenas do século 5 a.C., seriam democráticos. A rigor nenhum regime seria democrático. Autocratas adoram fazer essa confusão para dizer que nenhum regime é verdadeiramente democrático e justificar com isso suas tiranias.

Tirania é a palavra chave. O Hamas, a Jihad Islâmica, a Frente de Libertação da Palestina, o Irã (e seu braço terrorista no Líbano, o Hezbollah) e a Síria (ponto terminal de um sub-eixo autocrático que começa na Rússia com suas ambições neo-eurasianas) são organizações e regimes contrários à democracia: tiranias ou embriões de tiranias. Mas não apenas porque não são democráticos. E sim porque têm como missão varrer as democracias liberais da face da Terra.

E aqui entramos num quarto ponto importante para entender o que está acontecendo. Ainda que esteja havendo um claro reflorescimento do antissemitismo em todo o mundo, o ataque do Hamas não é apenas contra Israel. Assim como a invasão do ditador Putin não foi só contra a Ucrânia. Basta ver que muitos dos que diziam que a resistência ucraniana era nazista e que Putin estava apenas se defendendo da agressão da OTAN, são os mesmos que dizem agora que a resposta israelense é fascista e que o Hamas está apenas resistindo ao genocídio praticado por Israel. Se a Ucrânia não fosse uma democracia eleitoral (ou um regime em transição democratizante) Putin não teria contado com o apoio tácito da China para invadir o país. Se Israel não fosse uma democracia liberal (embora cadente sob o governo Bibi) o Hamas não teria tido o apoio do Irã (e talvez da Rússia) para ataca-lo.

O ataque do Hamas é mais grave do que parece. Não pela intensidade ou extensão da ação militar ou do ato terrorista em si. E sim pelas suas conexões com as ditaduras do Irã, da Rússia (e com o eixo autocrático em geral). O ataque do Hamas é um ataque ao mundo democrático.

Muitos analistas ainda não viram que não estamos no rescaldo da primeira guerra fria e sim numa segunda guerra fria. Não se trata mais apenas de ser contra os EUA e sim de ser contra todas as democracias liberais. Este é o sentido do eixo autocrático atual: isolar e exterminar as democracias. Entre o fim da primeira guerra fria e a eclosão da segunda guerra fria houve uma trégua. Os populistas pularam essa trégua e passaram diretamente da primeira para a segunda guerra fria. Isso explica porque continuam lutando contra o imperialismo norte-americano na vibe dos anos 60-80. E também explica porque, agora, não são apenas contra os EUA, mas se alinham às maiores autocracias do planeta (Rússia, China, Irã e, em breve, Índia) contra todas as democracias liberais. Sim, a segunda guerra fria é uma coalizão de ditaduras e de regimes eleitorais parasitados por populismos (de direita e de esquerda) contra as democracias liberais.

O Hamas atua agora apenas como um assassino terceirizado do eixo autocrático, cuja cabeça no Oriente Médio é o Irã. Mas o Irã faz parte do grande arco autocrático que começa na Rússia, passa pela China, vai arrastando a Índia, fecha o primeiro circuito na Síria e entra na África se espalhando. Esse arco se ramifica em todos os continentes com a adesão (ou não-contestação) de 33 autocracias puras (ditaduras típicas do século 20), 56 autocracias eleitorais e um número ainda desconhecido de regimes eleitorais parasitados pelos novos populismos do século 21 (de direita e de esquerda – incluindo, na América Latina, o Brasil sob o governo do PT, o México de Obrador, a Colômbia de Petro, a Bolívia de Evo, o Equador dos partidários de Correa, o pântano político do Peru etc.). As 32 democracias liberais estão cercadas e os 58 regimes eleitorais, chamados ainda de democracias, estão vulneráveis à ofensiva do eixo autocrático. Eis a situação real da liberdade no mundo sob a terceira onda de autocratização em que vivemos.

Por isso o Hamas é muito mais forte do que parece. A maioria dos seus militantes (jihadistas) está lá nos subterrâneos da faixa de Gaza. Os seus dirigentes, não: estão protegidos no Catar, na Síria, no Líbano, no Irã. Seus apoiadores, porém, estão espalhados pelo mundo todo, nas universidades, nos sindicatos e movimentos sociais, nos jornais e televisões, nos partidos e governos populistas (ditos de direita e de esquerda).

Segundo certo jornalismo dito progressista, mas simpático à tiranias, a única posição justa que Israel deve tomar é a seguinte. Não bombardear alvos em Gaza, pois que civis inocentes podem ser atingidos. Não entrar com tropas armadas no território de Gaza, pois que civis inocentes podem ser confundidos com os jihadistas e mortos ou feridos. Cessar fogo imediatamente e explicar para a população que, infelizmente, não se pode fazer nada, pois civis inocentes podem ser mortos ou feridos. Fazer um apelo ao Hamas para que devolva os reféns com vida e em boas condições de saude. Fazer um apelo ao Hamas para que não lance mais mísseis em Israel e prometa que não tornará a invadir o território do país. Ora, isso significa, objetivamente, dar a vitória ao Hamas.

Infelizmente o Hamas (ou melhor, o que o Hamas representa) pode ganhar essa guerra. Para o Hamas (quer dizer, para as forças tenebrosas que agora agem através do Hamas) vencer a guerra é emplacar a falsa narrativa de que representa o povo palestino que está sendo vítima de genocídio do governo colonial judeu.

Para os democratas, mesmo que fiquem em minoria no mundo, isso é inadmissível. Por isso, apoiar Israel hoje é um imperativo democrático. Mesmo se sua população fosse majoritariamente cristã, budista, islâmica, hinduísta ou sem religião, Israel deveria ser incondicionalmente apoiado pelos democratas.

Foto: Rawpixel/CreativeCommons

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Augusto de Franco é escritor, palestrante e consultor. É criador e um dos netweavers da Escola-de-Redes, dedicada à investigação sobre redes sociais e à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
É autor de dezenas de livros e textos sobre desenvolvimento local, capital social, democracia e redes sociais.

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