Daniela Kresch
TEL AVIV – Na nova temporada de “You”, na Netflix, uma jovem universitária resume as bases dos romances de mistério de Agatha Christie: 1) Não há coincidências; 2) Os motivos para os crimes são quase sempre sexo, dinheiro ou vingança; e 3) O primeiro suspeito é normalmente a segunda vítima. Como não consigo desligar a minha mente do que está acontecendo em Israel, identifiquei algumas ligações com a tentativa do governo Benjamin Netanyahu de enfraquecer a Suprema Corte do país no que ele e seus aliados chamam de “Revolução Jurídica”. Principalmente no quesito motivação para o crime: vingança.
Vingança é a palavra-chave neste 2023. A coalizão anterior, Bennett-Lapid, que unia oito partidos totalmente diferentes (dois de esquerda, dois de centro, três de direita e um árabe), tinha apenas como ponto em comum: a ojeriza a Netanyahu, indiciado por corrupção e acusado de concentrar o poder e pisar em cima de aliados. Já a atual coalizão, que une seis partidos só de direita, tem apenas um ponto em comum: revanchismo. Todos querem se vingar. É apenas isso que veem diante de seus olhos.
Cada um dos partidos, no entanto, tem um objeto de vingança diferente. E todos identificaram no revanchista-mor, Benjamin Netanyahu, o veículo para mirar em seus alvos. Bibi quer se vingar de todos os que o colocaram na posição de réu, nem que isso signifique passar com um trator em cima da Suprema Corte. Seu objetivo é mais do que claro. Ao amolecer o Supremo israelense, ele quer humilhar os juízes e membros do judiciário que “ousaram” indiciá-lo e conseguir aprovar alguma lei que o livre da prisão.
Mas seus aliados – de quem Netanyahu precisa para conseguir seu objetivo – identificaram a oportunidade de se vingar de outros setores da sociedade israelense ao tomar carona na jornada de Bibi em direção à sua vingança pessoal. Fica cada vez mais claro que os ultranacionalistas religiosos radicais de partidos como o Força Judaica (de Itamar Ben-Gvir), Sionismo Religioso (de Bezalel Smotrich) e Noam (de Avi Maoz) querem se vingar por duas coisas que eles consideram ter sido injustiças tremendas: os Acordos de Oslo, de 1993, e a Retirada de Gaza (e Norte da Cisjordânia), de 2005.
Eles se consideram injustiçados por todas as concessões que Israel jamais fez aos palestinos. Em sua visão, a Terra de Israel é só dos judeus e nunca Israel deveria ter concordado em devolver ou abrir mão de um centímetro em prol dos árabes (palestinos, egípcios, jordanianos, etc). Em 1995, um desses ultranacionalistas deixou claro sua oposição ao assassinar o ex-premiê Yitzhak Rabin. Mas a Autoridade Palestina foi criada e partes da Cisjordânia foram transferidas aos palestinos. Em 2005, na época do ex-premiê e ex-aliado da direita Ariel Sharon, eles não conseguiram parar a Retirada de Gaza e do Norte da Cisjordânia (Samária), algo que aconteceu rapidamente.
Em apenas nove dias, em 2005, 21 colônias em Gaza e quatro na Cisjordânia foram evacuadas. Oito mil colonos tiveram que deixar suas casas a toque de caixa (muitos deles não acreditavam que a retirada realmente aconteceria e só saíram à força, causando traumas a famílias inteiras). Agora, querem aprovar a reforma jurídica que enfraquecerá a Suprema Corte também a toque de caixa. Para que seus “inimigos” sintam na pele o que sentiram em 2005.
Já os partidos ultraortodoxos, o Shas (de Arieh Deri) e o Judaísmo da Torá, querem se vingar de todos que, para eles, são imorais e querem destruir o judaísmo “verdadeiro” com condutas pagãs: LGBTQI+, seculares, reformistas, mulheres não recatadas, mulheres que querem ser rabinas, etc. Eles querem um Israel extremamente ortodoxo, regido por leis religiosas, e querem se vingar de todos os que fizeram de Israel, 75 anos depois de sua criação, um país onde seculares e “imorais” têm direitos, onde leis não judaicas existem. Para eles, isso não é o Estado Judeu. O Estado Judeu deve ser apenas uma teocracia. E eles tiveram que engolir, até hoje, goela abaixo, essa coisa de cultura secular, mulheres cantando, biquinis, cheeseburgers, gays e etc.
No caso do Shas, a revanche se estende a judeus asquenazitas que, para eles, ainda são a “elite opressora” de Israel, que reprimiria e pisaria, ainda em 2023, nos judeus mizrahim ou sefaraditas. Afinal, em 1948, quando centenas de milhares de mizrahim migraram para a recém-criada Israel, os maldosos askenazitas e socialistas dos kibutzim e de Tel Aviv os oprimiram (o que realmente aconteceu, em alguma escala). Setenta e cinco anos depois, chegou a hora da revanche.
Em discurso à nação na noite deste domingo, 12 de fevereiro de 2023, o presidente Isaac Herzog tentou explicar por que o governo Netanyahu deve pelo menos diminuir o ritmo da aprovação das reformas jurídicas, que incluem a possibilidade do governo ignorar qualquer decisão do Supremo com maioria simples no Knesset (61 membros) e a mudança na nomeação de juízes para que sejam indicados apenas por políticos. Como ele conhece profundamente a sociedade israelense, tentou travar uma equivalência entre a dor dos retirados de Gaza e dos mizrahim oprimidos com a dor de quem, hoje, pede que a democracia israelense não seja pisoteada por essa reforma. Abaixo, trechos de seu discurso, que agora parecem claros:
“O fato de que não há suficiente diversidade, por exemplo, de juízes de origem mizrahit no Supremo me incomoda há anos. A reforma que está sendo apresentada não veio do nada. Ela é resultado de um campo que sente que foi reprimido através de uma falta de equilíbrio entre os poderes, que cruzaram limites com o passar do tempo. E não menos do que isso, é consequência de uma dor e frustração profundas que chegaram ao auge na Retirada de Gaza e do Norte da Samária (2005). Essa dor, de nossos irmãos e irmãs, é verdadeira. Negá-la ou ignorá-la é um grande erro.
“Milhões de cidadãos aqui, junto com os judeus da diáspora e grandes amantes de Israel em todo o mundo, veem a reforma como uma ameaça real à democracia israelense. Eles temem que a reforma em sua forma atual elimine e acabe com todos os freios e contrapesos, e eles temem que não haja ninguém para proteger o cidadão da força do governo. Essa dor, de nossos irmãos e irmãs, é verdadeira. Negá-la ou ignorá-la é um grande erro”.
Ao fazer uma equivalência entre a dor dos colonos ultranacionalistas e dos mizrahim com a dor dos amantes da democracia, Herzog fez um esforço para tentar estender a mão a todos e unificar o povo. “Somos todos irmãos”, essa era a mensagem. Mas essa alegação é fraca diante de grupos que só veem a sede de revanche no horizonte. Quem pensa: agora é a hora de pisar em cima de seculares, de pacifistas, de gays, de askenazitas, de humanistas, de quem é pró um Estado palestino.
E quem acha que esse tipo de vingança acontece só aqui, é só lembrar do que aconteceu recentemente nos Estados Unidos com a lei do aborto. Progressistas conseguiram que o Supremo de lá aprovasse há 50 anos que o aborto é algo constitucional. Mas os ultrarreligiosos nunca esqueceram. Meio século depois, após anos fazendo lobby para indicar juízes reacionários, eles conseguiram reverter a lei.
A democracia de pesos e contrapesos é o melhor sistema de governo que existe, mesmo que esteja longe de ser perfeita. Mas a democracia não soluciona divisões internas nos países. Divisões que parecem nunca sarar. O Brasil pós-Bolsonaro entende bem isso. Em Israel, o povo é e sempre foi dividido. E o que Netanyahu está fazendo agora, para se vingar pessoalmente de detratores, é assegurar que seus aliados que se sentem historicamente oprimidos possam se vingar com toda a força dos “irmãos” israelenses. Para Netanyahu, parece não haver problema nenhum nisso.