A morte de um jovem israelense nascido na Etiópia, alvejado por um policial, foi o estopim de uma série de protestos – alguns violentos – em todo o país. Cruzamentos, ruas e estradas foram bloqueadas por horas a fio pelos manifestantes de Norte a Sul do país. Em alguns dos pontos de protesto, houve incêndios de pneus e quebra-quebra de vitrines e carros. No ato mais violento, manifestantes subiram no capô de um carro que tentava ultrapassar o bloqueio em Tel Aviv e quase lincharam o motorista (ele ficou apenas ferido, mas o carro teve o pára-brisa e os espelhos estraçalhados).
As manifestações, no estilo do “Black Lives Matter” dos Estados Unidos, denunciam o tratamento policial em Israel a cidadãos ou moradores de pele negra. Tanto judeus de origem etíope (os falashas) quanto imigrantes ilegais de países como Eritreia e Sudão. Seus líderes afirmam que “os dedos dos policiais apertam o gatilho com facilidade demais”, o que não acontece com a população de pele branca. Eles também denunciam o racismo – às vezes velado, às vezes aberto – que permeia a sociedade israelense.
Salomon Teka, 18 anos, judeu nascido na Etiópia que imigrou para Israel há seis anos, morreu no domingo (30 de junho) em Kiryat Haim, perto de Haifa. A polícia alega que ele estava em um parque com um grupo de jovens etíopes que lançou pedras contra policiais. Um dos policiais teria atirado para baixo e a bala, depois de bater no chão, atingiu Teka. Testemunhas, no entanto, afirmam que foi a polícia que atiçou a confusão e o policial atirou diretamente contra Teka.
A guerra de versões não foi ainda investigada, mas no dia seguinte (2 de julho), milhares de judeus etíopes saíram às ruas para protestar contra o racismo em Israel e o tratamento brutal da polícia. Nos cruzamentos, entoaram gritos de guerra como “Nem branco, nem negro: somos todos seres-humanos!”, “Chega de racismo” e “Policial violento tem que estar atrás das grades!”. Muitos levavam cartazes com dizeres como “Somos da cor certa – o mundo é que enlouqueceu”, “País que nos ignora” e “Bibi, o Irã está dentro nós!”.
Se, por um lado, a opinião pública israelense considerou o protesto legítimo, por outro denunciou abusos nas manifestações e bloqueios de ruas principais. Casamentos não foram realizados porque os noivos não chegaram. Crianças não foram buscadas nas escolas. Doentes não conseguiram chegar a hospitais. A irritação coletiva levou a polícia a proibir, no dia seguinte, o bloqueio de ruas – que havia tolerado no dia anterior para não entrar em confronto com os manifestantes.
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu só se pronunciou depois que a opinião pública começou a tender contra os protestos – principalmente depois que o vídeo do quase linchamento do motorista em Tel Aviv viralizou: “Todos nós lamentamos a morte trágica do jovem Solomon Teka. Nós abraçamos a família e a comunidade etíope, que é muito querida por mim. Sei que existem problemas que precisam ser resolvidos”, disse Netanyahu. “Mas peço uma coisa: parem de bloquear as estradas. Somos uma nação de lei, não toleraremos o bloqueio de estradas”.
O presidente Reuven Rivlin também apelou aos manifestantes: “Isso não é uma guerra civil”, disse. “É uma luta compartilhada de irmãos e irmãs por seu lar e seu futuro juntos. Peço a todos nós a agir de forma responsável e com moderação”.
Mais sensível à dor de uma comunidade que se sente discriminada diariamente, Rivlin acrescentou: “Não aceitaremos uma situação em que os pais tenham receio de deixar seus filhos saírem de casa por medo de serem feridos por causa da cor de sua pele ou de sua origem étnica. Minha casa é sua casa. Vamos nos sentar junto com todos os órgãos responsáveis pela segurança dos cidadãos israelenses. Só assim, em conversa aberta, por mais dura que seja, conseguiremos a mudança”.
Não é a primeira vez que a comunidade etíope sai às ruas. Em 2015, um video de dois policiais espancando brutalmente um soldado uniformizado de origem etíope provocou dias de protestos, alguns dos quais violentos. Em janeiro deste ano, em outro caso que provocou alvoroço, um jovem de 24 anos, também de origem etíope, foi baleado e morto por policiais. Fora esses casos extremos, os membros da comunidade reclamam de racismo diário: dificuldades maiores em conseguir emprego, de entrar em boates, de alugar e comprar apartamentos em certos bairros.
A comunidade etíope em Israel é formada por 120 mil pessoas, sendo que 40 mil nasceram no país, têm o hebraico como língua natal e participam ativamente da vida nacional. A imigração em massa dos etíopes é um dos capítulos mais complicados da história de Israel, com lados positivos e negativos.
O projeto da imigração dos judeus etíopes – apelidados de falashas ou de Comunidade Beta Israel – começou em 1979, poucos anos depois que o rabino Ovadia Yossef, um dos mais influentes do país, os reconheceu como judeus. Como Israel não tinha relacionamento diplomático com a Etiópia, o serviço secreto israelense, o Mossad, contatou agentes sudaneses para ajudar milhares de falashas a chegarem à fronteira com o Sudão, de onde poderiam ser levados para Israel.
O caminho era feito a pé e na surdina e estima-se que 4 mil pessoas tenham perecido no trajeto, de fome ou vítimas de bandidos. Diante dos perigos, o governo israelense decidiu acelerar o processo e, em 1985, deslanchou a “Operação Moisés”, levando 8 mil etíopes, de uma vez só, para a Terra Santa.
Outras operações semelhantes se seguiram. Mas líderes dos etíopes em Israel expõem cada vez mais as falhas do processo que criou uma comunidade com problemas de integração em Israel. A diferenças culturais, sociais e educacionais são latentes, principalmente em comunidades localizadas na periferia. Muitos não conseguem se adaptar à vida no país e têm dificuldade de se integrar no sistema educacional e laboral local. Isso sem contar casos de racismo claros, como o de escolas religiosas que separam estudantes negros dos brancos, forçando a intervenção do Ministério da Educação.
“Agradecemos ao Estado de Israel, que fez de tudo para trazer uma população que manteve seu judaísmo por mais de 2 mil anos e que tinha como sonho voltar a Jerusalém” – diz a conselheira educacional Michal Avera Samuel, de 38 anos, que imigrou em 1985. – Mas ainda não é o suficiente. Não podemos apenas nos apaixonar pela imagem romântica dessa imigração. O governo precisa lutar contra o preconceito e o racismo.
Os Beta Israel acreditam ser descendentes da tribo israelita de Dan, cujos membros migraram para o Reino de Cush (hoje Etiópia e Sudão) na época da destruição do Primeiro Templo de Salomão, no século VI AC, e passaram dois milênios isolados de outras comunidades judaicas. Para alguns, no entanto, a origem é mais antiga e tem como base na história bíblica do romance entre o Rei Salomão e a Rainha de Sabá.
“Sou morena, mas sou bela, ó filhas de Jerusalém! Como as tendas de cedro, como os pavilhões de Salomão”. A musa do verso do “Cântico dos cânticos”, texto poético bíblico que teria como autor o próprio Rei Salomão, seria, para muitos, ninguém menos do que a mitológica rainha africana. Se, na Bíblia, a Rainha de Sabá apenas visitou o Rei Salomão e trocou presentes com o sábio líder, no “Livro da Glória dos Reis” (Kebra Negast), um texto religioso etíope de 700 anos, a história é mais íntima. O livro conta como o Rei Salomão e a rainha tiveram um filho do qual descende toda a comunidade etíope judaica, além dos chamados “falashmura”: cristãos que alegam ser descendentes de judeus convertidos ao cristianismo por missionários, no século XIX. Esses ainda lutam para serem reconhecidos por Israel e imigrarem para o país.