Revital Poleg
Foi impossível não se horrorizar com os recentes acontecimentos internos na Síria e não refletir com preocupação sobre os rumos que esses eventos podem tomar. O que começou em 6 de março como uma tentativa de revolta de rebeldes alauítas nas províncias costeiras de Latakia e Tartus — centros populacionais da comunidade alauíta, anteriormente considerados bastiões do presidente deposto Bashar al-Assad — rapidamente se transformou, devido à resposta do novo regime sírio, em um massacre. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, mais de 1.300 pessoas perderam a vida nos confrontos — homens, mulheres, crianças e idosos, sendo que 400 deles eram oficiais e soldados do novo Exército Sírio.
Após a queda de Assad, o novo regime prometeu respeitar todas as comunidades e grupos étnicos no país. No entanto, após três meses de relativa calma, o novo regime enfrenta agora, pela primeira vez, um desafio significativo que abalou a comunidade internacional e levantou sérias preocupações sobre o rumo que a nova Síria está tomando sob a liderança de al-Julani. Esses desdobramentos representam um revés significativo para um líder que busca projetar uma imagem moderada e tolerante.
Como um gesto de boa fé, o presidente anunciou, ao término do que a Síria chamou de ‘operação militar contra os remanescentes do antigo regime’, a criação imediata de uma comissão nacional de inquérito para punir todos os responsáveis pelos atos que chocaram o mundo, afirmando que ‘esses atos comprometem nossa unidade; somos um Estado de direito’. A responsabilidade de provar suas intenções e executá-las recai, obviamente, sobre ele. Além disso, ele apontou o dedo para o Irã e o Hezbollah, aliados de Assad e inimigos jurados dos grupos rebeldes sunitas, acusando ‘elementos subversivos’ de prejudicarem as forças armadas e matarem civis.
Desde o ataque surpresa dos rebeldes sírios que levou à queda do regime de Assad em 8 de dezembro de 2024 e à tomada de poder por Ahmad al-Sharaa (conhecido como al-Julani) — líder jihadista sunita e ex-comandante do grupo extremista Hay’at Tahrir al-Sham (HTS) — a Síria está em um processo de redefinição e reestruturação de seu governo. O caminho que esse novo governo escolher impactará profundamente a natureza da fronteira entre Síria e Israel e moldará as relações entre os dois países vizinhos.
Ainda não está claro qual rumo esse novo governo tomará e quais são as intenções de seu líder. Ele pretende construir um Estado moderno e funcional em cooperação com o Ocidente (seguindo o modelo turco)? Ou busca estabelecer um regime islâmico extremista sob a lei da Sharia — semelhante ao Afeganistão governado pelo Talibã? Ou, talvez, a Síria evolua para um cenário de fragmentação e instabilidade interna contínua, com conflitos prolongados entre seus diversos grupos, como o que ocorre no Iraque? Ou será que existe também a possibilidade do surgimento de um novo modelo, ainda indefinido?
A questão é complexa. Não se trata apenas de uma mudança de regime, mas também de uma transformação ideológica e de orientação. O novo governo rompeu com a influência iraniana e com o domínio da minoria alauíta-xiita, configurando-se agora como um regime sunita com uma orientação islâmica, ainda que não necessariamente jihadista — se levarmos ao pé da letra as declarações de seus líderes e não as interpretarmos como parte de um jogo político em busca de legitimidade internacional.
O que isso significa para Israel e sua política em relação à Síria permanece uma questão em aberto.
Historicamente, a Síria foi um epicentro de tensões regionais e internacionais, o que levou o jornalista britânico-judeu Patrick Seale, biógrafo de Assad pai, a descrever a história da Síria como marcada por um “conflito contínuo”. Seale argumentava que, para controlar o Oriente Médio, era essencial dominar a Síria, devido à sua importância geoestratégica. Embora essa tese nem sempre tenha resistido ao teste do tempo, a Síria continua sendo um palco central no confronto de interesses globais e regionais.
Com a queda do regime de Assad e a subsequente perda de influência do Irã e do Hezbollah na Síria, a disputa por influência sobre o país foi reaberta. Turquia e Catar, de um lado, e Arábia Saudita, do outro, competem por domínio, enquanto Rússia e Estados Unidos ainda buscam definir seu papel na região.
À primeira vista, parece que Israel se beneficiou das mudanças na Síria, já que o novo regime não representa uma ameaça direta e imediata. Al-Sharaa afirmou várias vezes que não busca conflito com Israel, focando seus esforços na reconstrução política e econômica do país. Suas declarações, agradáveis ao Ocidente, alimentam esperanças de mudança. Mas, será que isso também se aplica às relações com Israel? Esperemos que sim.
Ainda assim, a realidade é mais complexa. A desconfiança e a cautela de Israel em relação a al-Sharaa são compreensíveis. Enquanto o regime anterior foi eliminado, o novo governo ainda não conseguiu estabelecer uma estrutura estatal consolidada, criando um ambiente de incerteza que pode gerar desenvolvimentos indesejados. A posição oficial de Israel considera o massacre dos alauítas um sinal preocupante de ameaças emergentes que exigem uma preparação antecipada por parte do sistema de segurança. Essa abordagem é, em parte, reflexo das lições dolorosas de 7 de outubro e da cautela extrema que Israel vem adotando desde então.
No entanto, cabe questionar se a postura assertiva adotada por Israel e a retórica vocal em relação a al-Sharaa — expressa pelo primeiro-ministro, pelo ministro da Defesa e até pelo novo chefe do Estado-Maior — são, de fato, a estratégia mais adequada. Por exemplo, as declarações do ministro Israel Katz, da Defesa, sobre a presença das Forças de Defesa de Israel no Monte Hermon sírio, que ele descreveu como “longa e sem prazo definido”, ou sua afirmação de que “o local onde estão os soldados das FDI fica a cerca de 30 km de Damasco — alcance de tiro da artilharia israelense” levantam questões. Resta esperar que essa retórica contundente não crie uma nova armadilha conceitual para Israel, mas sim que permita espaço para reflexão crítica e questionamentos, mantendo, ao mesmo tempo, todas as precauções necessárias. Tudo isso deve ser feito em paralelo com uma análise atenta das possíveis oportunidades para o desenvolvimento de relações de vizinhança mais positivas.
Enquanto ainda se especula sobre os rumos futuros, um evento recente sugere uma possível abertura: em 14 de março, cerca de cem líderes religiosos drusos da Síria chegaram a Israel para uma visita histórica de um dia, liderada pelo líder da comunidade drusa israelense, o xeque Mowafaq Tarif. Pela primeira vez em 51 anos, três ônibus cruzaram a fronteira sírio-israelense, trazendo uma comitiva emocionada. Durante a visita, eles se reuniram com seus colegas e parentes drusos israelenses, subiram ao túmulo do xeque Amin Tarif — líder espiritual e premiado com o Prêmio Israel — e realizaram orações em conjunto. Esta visita, autorizada pelo novo regime, é particularmente significativa, considerando que o regime de Assad, derrubado há cerca de três meses e meio, proibia qualquer contato com os drusos em Israel.
Seria essa visita um prenúncio de melhores relações? Ainda é cedo para afirmar, mas talvez represente um passo inicial no caminho para a construção de confiança, com esperanças de que possa inaugurar um novo capítulo de diálogo e cooperação.
Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.
(Foto: WikimediaCommons/IsraelPM)