Daniela Kresch
TEL AVIV – Um gesto inusitado suscitou emoções fortes durante a mais recente libertação de reféns israelenses pelo grupo terrorista palestino Hamas, na sexta-feira passada, 22 de fevereiro. Um beijo. Aliás, dois beijos. Não apaixonados como o do pintor austríaco Gustav Klimt, mas constrangedores e infames como o Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues. O refém Omer Shem Tov, após 500 dias no cativeiro, sem ver a luz do dia, acorrentado, torturado e mal nutrido, beijou a testa de dois terroristas mascarados e armados a seu lado pouco antes de ser transferido para a Cruz Vermelha.
A imagem dos beijos malditos foi filmada e fotografada avidamente pelos documentaristas do Hamas presentes à cerimônia macabra e pela Al Jazeera, a única TV permitida em Gaza (e apoiadora sem vergonha do Hamas). Afinal, desde o começo das libertações dos reféns, em meados de janeiro – com o desfile, em palcos enfeitados com ilustrações e dizeres antissemitas, de pessoas esquálidas, sem contar os caixões da família Bibas –, dezenas de fotógrafos e cinegrafistas registram tudo. “Repórteres” do Hamas entrevistam os amedrontados reféns, que certamente farão de tudo para sobreviver a esse momento até́ serem libertados e voltar a suas famílias.
O Hamas está registrando tudo para seus vídeos e documentários de propaganda lúgubres. Se já era terrível assistir o teatro de horrores, o circo de repulsa que o Hamas têm montado desde o começo do acordo de devolução dos reféns sequestrados de suas camas e de um festival de música em 7 de outubro de 2023, ver os beijos na testa de Omer foi impressionantemente difícil para os israelenses.
Mas, ninguém tinha dúvidas, em Israel, de que se tratava de manipulação, de propaganda terrorista para vender uma imagem fake do Hamas como um grupo “benevolente” de guerrilheiros “empáticos” e que se importam com seus reféns. Como se não os tivessem torturado, como se os libertados não parecessem sobreviventes do Holocausto, a cabeça raspada, os corpos cheios de cicatrizes e machucados.
Omer foi coagido a fazer o que fez, como pode ser visto por quem se der ao trabalho de assistir ao vídeo completo do momento absurdo. Ele é “dirigido” pelo cinegrafista do Hamas, que também orienta os terroristas. O próprio Omer explicou isso quando voltou a Israel. Ele estava num momento de tanta tensão, euforia e confusão que não tinha como dizer não ao diretor terrorista.
O pior de tudo isso é que tem gente que acredita. E muitas delas passaram a última década reclamando de fake news, dos terraplanistas, dos negadores da vacina, dos bolsonaristas-raiz, dos trumpistas golpistas que manipulam a realidade para enganar suas bolhas. Mas, quando se trata de Israel, acreditam piamente nas lorotas de terroristas islâmicos.
Na minha timeline das redes sociais, imagens dos beijos começaram a pipocar logo depois da libertação de Omer Shem Tov, com pessoas mal-informadas (ou mal-intencionadas) glorificando o ato como se fosse de “amor”. Como se Omer estivesse agradecendo a seus algozes benevolentes. Como se Omer estivesse, quem sabe, comovido com a “causa” de seus sequestradores.
Onde eu já vi isso? Ah, na história do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, no Brasil, em 1969, pela Ação de Libertação Nacional (ALN) e pelo Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) em protesto contra a ditadura militar. Uma ação famosa e emblemática ainda glorificada por muitos no Brasil. Não sei de todos os detalhes, mas o embaixador teria se comovido com a demanda dos sequestradores de libertar 15 presos políticos detidos pela ditadura.
O embaixador, porém, foi libertado em 78 horas. Não foi torturado, colocado no pau-de-arara, ou ficou faminto a ponto de desmaiar. Não perdeu quilos de peso. Não ficou mais de 500 dias preso em túneis subterrâneos, em condições desumanas e sem ver a luz do sol ou mesmo pode ficar de pé. Sem poder contatar as famílias ou mesmo ser visitado pela Cruz Vermelha. Não foi comercializado por seus sequestradores em troca de centenas de presos condenados por terrorismo e assassinatos e em nome de uma ideologia fundamentalista e racista, que visa eliminar o país vizinho.
Não se pode, em momento algum, fazer qualquer paralelo entre alhos e bugalhos. O Oriente Médio não é o Brasil. O conflito entre israelenses e palestinos não tem nada a ver com a ditadura militar na América Latina. Marte e Vênus.
Mas tem gente que, em nome do ódio insano a Israel, compra imediatamente a propaganda do Hamas. Omer Shem Tov foi libertado com mais cinco reféns amedrontados e frágeis (Omer Venkert, Elya Cohen, Avera Mengistu, Tal Shoham e Hisham al-Sayed) em meio à turba de terroristas mascarados e armados – além de civis fanatizados e felizes. Quem de nós, em seu lugar, não faria o mesmo?
Quero saber quem acreditaria se uma mulher fosse sequestrada por seu abusador e, para ser libertada, fosse orientada a beijá-lo na frente das câmeras, ao vivo. Ela o faria por instinto de sobrevivência e todos entenderiam que foi intimidação. Há reféns, também, que sofrem com a famosa Síndrome de Estocolmo, desenvolvendo uma relação afetiva com seus captores. Talvez esse tenha sido o caso do embaixador americano sequestrado no Brasil. Mas, certamente não é o caso dos reféns israelenses. E mesmo que fosse, não justifica acreditar que beijos constrangedores como esses significam que o Hamas é “bonzinho” e que os israelenses sequestrados tenham se unido à sua causa ou sequer perdoado o que fizeram com eles e seus entes queridos sequestrados e assassinados em 7 de outubro de 2023.
Como Omer, alguns reféns acenaram e mandaram beijinhos. Fizeram isso por medo e inebriados pela euforia da libertação. Mas muitos insistem em acreditar que foi “de verdade” e que eles estavam agradecendo a seus algozes desprezíveis.
A mente humana é capaz de ignorar a realidade e focar apenas no que acredita, como no filme “Don’t Look Up”, de 2021, quando os negacionistas insistem em negar que um cometa colidirá com a Terra mesmo que seja possível ver o cometa se aproximando a olho nu. Neste caso, os negacionistas também insistem em olhar pelas lentes de um grupo terrorista.
Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.