Revital Poleg
A questão do alistamento dos haredim no exército não é nova no cenário israelense. Desde a fundação do país, ela tem sido um dos temas mais controversos e divisivos da sociedade e da política de Israel. No entanto, desde os eventos de 7 de outubro de 2023, essa questão deixou de ser apenas polêmica e tornou-se uma questão existencial.
Em meio à guerra prolongada em múltiplas frentes, as Forças de Defesa de Israel enfrentam uma grave escassez de pessoal, especialmente combatentes. O fardo da atividade militar contínua desgasta os soldados do serviço regular, enquanto o recrutamento seguido e complexo dos reservistas prejudica suas vidas familiares e econômicas. O número de feridos é significativo, mais de 13 mil, agrava ainda mais a situação, já que estas pessoas não podem voltar ao serviço ativo. Tudo isso ocorre enquanto um setor inteiro da população continua a desfrutar de uma isenção quase total do serviço militar: os ultraortodoxos.
Por anos, governos israelenses sucessivos evitaram tratar dessa questão de forma estrutural devido às suas implicações políticas. No entanto, agora, é a própria sociedade israelense que exige mudanças imediatas na política de alistamento.
Os números falam por si só: uma pesquisa recente do Instituto Israelense para a Democracia revelou que 81% dos judeus não ultraortodoxos acreditam que a política de alistamento dos haredim deve mudar devido à necessidade urgente de reforçar as forças armadas. O apoio ao recrutamento dos haredim transcendeu setores da sociedade de forma inédita, criando uma nova realidade política em Israel: 90% dos judeus seculares, 80% dos judeus tradicionais não religiosos, 66% dos judeus tradicionais religiosos e, até mesmo, 64,5% do público religioso – um salto de 41% em janeiro 2024 para 64,5% em novembro de 2024. Por outro lado, a comunidade ultraortodoxa, especialmente sua liderança política, continua a resistir ferozmente a essa demanda, ameaçando dissolver o governo caso a exigência não seja revogada. Segundo a pesquisa, 57% dos ultraortodoxos acreditam que o aumento do fardo da segurança não justifica mudanças na política de alistamento, e apenas 21,5% reconhecem que a realidade da segurança exige ajustes.
Ainda assim, esses números não indicam que os próprios haredim se vejam como parte da solução. Essa ameaça coloca o primeiro-ministro diante de um dilema real, pois ele teme pelo seu futuro político.
Sem exagero, essa questão representa uma ruptura social de grande magnitude. Uma das mudanças mais significativas é a transformação histórica na posição da comunidade sionista-religiosa (dati-leumi) em relação ao recrutamento dos haredim. Por décadas, havia um “entendimento silencioso” entre os setores sionista-religioso e ultraortodoxo sobre essa questão. Mas essa realidade mudou drasticamente.
Nesta semana, será apresentado a Knesset, o parlamento, um projeto de lei sobre o recrutamento dos haredim, conforme exigido pela legislação vigente, uma vez que o acordo anterior sobre as quotas de alistamento já expirou. Em Israel, um país onde o limiar de sensibilidade a eventos históricos atingiu níveis extremos desde o trágico 7 de outubro, a introdução dessa lei – que a coalizão preferiria evitar – representa um marco crucial e histórico nessa questão.
Esse não será um projeto de lei que resolverá o problema, pois isso colocaria em risco a sobrevivência da coalizão. Em vez disso, será uma proposta suavizada e alterada para manter a estabilidade política. Em vez de propor uma solução real, o governo tenta evitar um confronto com os partidos ultraortodoxos, oferecendo apenas medidas superficiais. As propostas legislativas em discussão atualmente não atendem às necessidades do Exército; em vez disso, garantem aos haredim praticamente tudo o que eles desejam – adiamentos indefinidos do serviço militar e condições irrisórias para quotas de alistamento que nunca são cumpridas.
O medo de desmantelar a coalizão paralisa os tomadores de decisão, apesar do amplo consenso público sobre a necessidade de mudança. A demissão do ex-ministro da Defesa, Yoav Gallant, em meio a uma guerra multidimensional, decorreu essencialmente de sua oposição à intenção de Benjamin Netanyahu de continuar financiando os ultraortodoxos e evitar uma legislação que obrigasse seu recrutamento. Parece absurdo, mas essa é a triste realidade.
Sob qualquer perspectiva, essa legislação será um insulto aos milhares de soldados – do serviço regular, da reserva e da carreira militar – incluindo seculares, sionistas-religiosos e outros, que continuarão a carregar esse fardo sozinhos, enquanto jovens ultraortodoxos seguirão estudando Torá, sem contribuir para a defesa do país.
As diferenças entre o mundo ultraortodoxo e o sionista-religioso sempre existiram, mas agora se tornaram um ponto de conflito crítico. Enquanto os haredim consideram o estudo da Torá um valor supremo que os isenta de qualquer obrigação militar, os sionistas-religiosos acreditam em uma Torá ligada à ação, à dedicação e à participação ativa e plena em todos os setores da sociedade israelense. O serviço militar é visto como uma obrigação moral, ética e religiosa.
O abismo entre os que servem e os que se isentam nunca foi tão evidente, e essa divisão está dilacerando a sociedade israelense. Além disso, há um novo fator em jogo: o colapso da aliança silenciosa entre os sionistas-religiosos e os ultraortodoxos. Para muitos sionistas-religiosos, a recusa dos haredim em servir não é apenas um problema social – é uma traição aos valores judaicos.
Ainda assim, é importante destacar que, enquanto a liderança ultraortodoxa luta contra o alistamento dos estudantes de yeshivá, já é possível notar sinais iniciais de mudança dentro da sociedade haredi. Na periferia desse setor, um número crescente de jovens ultraortodoxos demonstra interesse em servir nas forças armadas. Relatos indicam que os eventos de 7 de outubro abalou alguns segmentos da sociedade haredi, especialmente entre os mais jovens da ala moderna e integrada. Há um aumento, embora ainda pequeno, na consciência sobre a importância do serviço militar.
Nesta semana, foi estabelecida uma nova unidade militar composta por haredim que se alistaram voluntariamente. Embora os números ainda sejam muito pequenos, o próprio processo é significativo. O Exército se comprometeu a fornecer condições especiais para que esses soldados possam conciliar o estudo da Torá com o serviço militar.
Isso, no entanto, preocupa os políticos ultraortodoxos, que veem qualquer tentativa de integração como uma ameaça ao seu poder. Seu interesse é preservar a separação de sua base eleitoral do restante da sociedade israelense, temendo que um contato mais amplo leve à assimilação e enfraqueça seu apoio político.
A história nos ensina que qualquer tentativa de impor a uma comunidade um modelo de conduta que não esteja alinhado com seus desejos, necessidades e aspirações está fadada ao fracasso. A grande questão é se os políticos ultraortodoxos, sua liderança espiritual e o próprio governo conseguirão se adaptar às mudanças em curso e às necessidades essenciais do Exército, ou se continuarão focados apenas em garantir seu futuro político. Caso optem por esse caminho, é provável que se vejam diante de um impasse, quando a realidade inevitavelmente os confrontar.
De qualquer forma, o novo projeto de lei do recrutamento terá um impacto profundo em toda a sociedade israelense. Pelo que se vê no momento, o embate está apenas se intensificando.
Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.
(Foto: WikimediaCommons/IDF)