Daniela Kresch
TEL AVIV – O que aconteceu esta semana no Líbano e adjacências será estudado no futuro como uma das ações de espionagem cibernética mais incríveis que já aconteceram na história da humanidade. Na terça e quarta feiras, dias 17 e 18 de setembro, milhares de pagers e walkie-talkies – além de outros aparelhos – explodiram ao mesmo tempo por todo o Líbano e alguns outros países, como a Síria. As explosões deixaram milhares de feridos e um número ainda incerto de mortos (talvez dezenas). A grande maioria das vítimas é formada por militantes, combatentes ou pessoas envolvidas com a guerrilha libanesa Hezbollah, arqui-inimiga de Israel. Os aparelhos haviam sido distribuídos a eles – e apenas eles – há alguns meses.
As cenas de caos e de explosões circularam pelo mundo, são transmitidas ad nauseum em todos os canais de TV, publicadas em sites e jornais. Não há dúvida de que foi uma ação ousada. Israel não admitiu formalmente relacionamento com o evento, mas seria risível achar que foi outro ator.
Não posso dizer que me sinto confortável ao ver essas imagens. No meu mundo ilusório, haveria paz nesta região. Israelenses, palestinos, libaneses, sírios e jordanianos dariam as mãos, se uniriam num bloco geopolítico e se tornariam uma das maiores potências econômicas do mundo. Uma grande Dubai. O Hezbollah não existiria. O Hamas e a Guarda Revolucionária também não. A região alcançaria novos cumes de desenvolvimento social e humano.
Mas aí toca o despertador e a gente acorda. Em meio a quase um ano de uma guerra terrível entre Israel e Gaza, agora há o perigo iminente de uma guerra ainda pior: entre Israel e o Hezbollah.
Como sempre, a diferença de como a imprensa local em Israel e a imprensa internacional cobre esse evento é incrível. Parece que se trata de dois acontecimentos completamente diferentes, em dois planetas distantes. Aqui, o destaque é para a ousadia e o sucesso do ataque contra um grupo terrorista que tem como único objetivo a eliminação do Estado de Israel e que há quase um ano lança diariamente centenas de mísseis, foguetes e drones contra todo o Norte de Israel, causando incêndios, destruição e a morte de mais de 50 pessoas (incluindo as 12 crianças assassinadas enquanto jogavam futebol nas Colinas do Golan), além do deslocamento de quase 100 mil pessoas, que há um ano não podem voltar para suas casas em cidades como Metula e Kiryat Shmona. Os que se recusam a sair de suas cidades vivem em bunkers.
Há um componente de orgulho na cobertura israelense. Destaca-se a destreza, a logística, a imaginação e a capacidade de quem pensou e realizou essa ação tão sofisticada. Coisa de filme. Certamente, a imprensa local diminui relatos sobre civis mortos. Se há cenas de crianças e mulheres sendo feridas pelas explosões, elas não passam nas televisões daqui. Assim como os israelenses também não veem 90% das cenas de horror e destruição na Faixa de Gaza que o resto do mundo vê.
Mas, pelo mundo, o viés também é claro. Não creio que passem, nas televisões do Brasil e do mundo, as cenas diárias de bombardeios de casas em Israel, danos a prédios públicos, incêndios florestais, destruição de fazendas e mortes de moradores e de animais em currais e galinheiros. Sem esse contexto, realmente a ação contra o Hezbollah seria absurda, maldosa sem causa. Ouvi dizer que um jornalista brasileiro chamou a explosão dos pagers de “atentado terrorista”. Como se Israel não tivesse motivo algum para fazer uma ação como essa. Não deve ter sido o único.
Afinal, o que acontece em Israel nunca são “fatos”. Depende de qual lado você apoia. É como na música de Ella Fitzgerald e Louis Armstrong: “You like potêito and I like potáto”.
Para quem odeia Israel e acha que tudo o que o faz e quer é “colonizar” e “explorar” terras alheias, além de atacar seus vizinhos por motivos puramente expansionistas, sem dúvida o que aconteceu foi um ataque terrorista injustificado. Para quem, por outro lado, acredita que Israel não pode se dar ao luxo de deixar dezenas de milhares de moradores do Norte do país como refugiados dentro de sua própria nação, com chuvas diárias de mísseis e foguetes, a ação cibernética no Líbano foi justificada.
Mais do que justificada: de dar orgulho. Ao invés de bombardear o bairro do Hezbollah em Beirute, a Dáhia, o que certamente levaria muitas mortes de civis libaneses, o plano foi o de ferir quase que exclusivamente apenas membros do Hezbollah. Só eles tinham em seu poder os pagers e walkie-talkies alvejados. Se existia alguma maneira de checar quem realmente é do Hezbollah, essa era a melhor delas. Foi um ataque cirúrgico. Aliás, o embaixador do Irã no Líbano tinha um pager desses. Interessante, né?
A ação no Líbano é mais um capítulo da concepção do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de que só pressão militar levará Hamas e Hezbollah a recuarem. Netanyahu acha que é preciso demonstrar força para reaver a dissuasão israelense perdida em 7 de outubro. Naquele dia fatídico, Israel demonstrou uma fraqueza inimaginável um dia antes. Fraqueza interna – não conseguiu proteger seus cidadãos – e aos olhos de seus inimigos. Como um país com um poder bélico e de informação como Israel não conseguiu prever e evitar o massacre de 1.200 pessoas e o sequestro de 250 em algumas horas quando mais de 6 mil terroristas palestinos de Gaza invadiram Israel e cometeram atrocidades contra moradores de kibutzim, de moshavim, de Sderot…?
Naquele momento, muitos analistas geopolíticos disseram que isso ecoaria mal no Oriente Médio, uma região complicada onde fraqueza é o pior dos pecados. Sem parecer forte, Israel perderia seu direito de existir por aqui. A doutrina Netanyahu de “pressão militar” vem dessa concepção. Sem mostrar que é forte, que pode realizar ações como a dos pagers explosivos, Israel perderia o respeito de seus amigos regionais – e, principalmente, de seus inimigos.
A ataque aos pagers e walkie-talkies do Hezbollah, bem como ações como o assassinato do líder do Hamas, Ismail Haniyeh, em plena Teerã, entre outras, certamente devolvem Israel ao patamar de 6 de outubro de 2023. Mas a pergunta é: a que custo?
Será que cutucar o Hezbollah com vara curta – o que provavelmente levará a uma guerra real entre Israel e Líbano 18 anos depois da última, em 2006 – valerá à pena? Alguns dizem que essa guerra é inevitável desde 7 de outubro e que deveria ter acontecido antes (principalmente moradores deslocados do Norte, ansiosos para ver o Hezbollah longe da fronteira com Israel). Mas outros consideram que essa iminente guerra com o Hezbollah só irá piorar ainda mais a situação de Israel após o pior ano de sua História. Isso sem contar com o fato de que um conflito com o Hezbollah certamente não ajuda a salvar os 101 reféns que o Hamas ainda mantém em Gaza. Os que estão vivos passam por torturas físicas e psicológicas inimagináveis.
Há dúvidas, muitas dúvidas. Será que Israel terá força militar suficiente para lidar com tantas frentes de batalha? Com mais de 700 soldados mortos e milhares feridos e fora de combate? Com reservistas cansados e que há um ano deixaram suas vidas, seus empregos, seus esposos e esposas, filhos, carreiras? Será que Israel contará com remessas de armamentos para tanto? Holanda, Reino Unido e Alemanha (até mesmo ela) já estão limitando ou cancelando remessas. Isso sem contar com o isolamento mundial, o aumento exponencial do antissemitismo pelo planeta, os julgamentos em Haia…
A maior dúvida, no entanto, está nas intenções de Netanyahu. Será que uma guerra real contra o Líbano, que arrisca se tornar regional, é realmente necessária estrategicamente ou não seria melhor fazer logo um acordo de cessar-fogo com o Hamas – o que acalmaria também a fronteira Norte? Será que essa doutrina de “pressão militar” tem motivos estratégicos ou políticos? Para muitos, Netanyahu quer mesmo é empurrar os conflitos com a barriga para se manter no poder. Caso opte por um cessar-fogo – o que mais de 60% da população de Israel quer! – ele certamente perderia o apoio dos radicais de direita de sua coalizão, o que derrubaria seu governo.
Como não sei todos os detalhes, não tenho todas as informações da cúpula militar e política, e não sou uma gênia, não ouso dar uma opinião dessas de “motorista de táxi em Copa do Mundo”. Só o que consigo, neste momento, é torcer. Torcer que os cenários pintados de uma guerra com o Hezbollah (milhares de mísseis contra todo o país que o sistema antiaéreo israelense não conseguiria interceptar, milhares de mortos e feridos…) não se concretizem. Torcer para que todos que eu amo fiquem seguros e que esse pesadelo acabe logo.
E aos “motoristas de táxi” do Brasil que estão longe da realidade do Oriente Médio, sugiro que palpitem só mesmo sobre futebol.
Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.
(Foto: Reprodução)