Entenda a decisão do Supremo que obriga ultraortoxodos a se alistarem

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Daniela Kresch

TEL AVIV – Numa decisão histórica, a Suprema Corte de Israel decidiu, por unanimidade, na terça-feira dia 25 de junho, que o governo deve recrutar jovens ultraortodoxos (os haredim) para o serviço militar, uma vez que não existe mais qualquer enquadramento legal para continuar a prática de décadas de conceder isenção ao alistamento desses jovens. É difícil explicar para quem não conhece Israel o quão incrível e sem precedentes é essa decisão. A imprensa internacional (incluindo a do Brasil) não ecoou muito o assunto. Imagino que seja por ignorância sobre sua importância. Ou talvez por achar que não tenha a ver com “guerra” e “palestinos” (únicos assuntos que realmente interessam, quando se trata de Israel).

Mas, será que não tem a ver? O que os incautos que desconhecem este país ignoram é que a questão do serviço militar obrigatório é fundamental para Israel justamente porque o país enfrenta guerras e conflitos com seus vizinhos no Oriente Médio desde o dia que nasceu, em 14 de maio de 1948. Nesse sentido, se o serviço militar é obrigatório em Israel, como um grupo de 13% dos jovens judeus de 18 a 21 não é alistado (e não vou entrar aqui na questão da minoria árabe-israelense, que é outra história)?

Ao contrário do que pensam os antissemitas modernos (os “antissionistas”), Israel é um país pequeno com número limitado de soldados. Não é uma potência populacional como Estados Unidos e Rússia. É menor que Sergipe e tem menos de 10 milhões de pessoas. Antes de 7 de outubro de 2023, muitos pensavam que o número de combatentes no exército israelense não interessava tanto. Guerras viraram cibernéticas ou por drones, certo?

Errado. As atuais guerras contra o Hamas em Gaza e contra o Hezbollah, na fronteira Norte, requerem milhares de soldados lutando como no século 20: em campo. Com quase 9 meses de batalhas, os soldados da ativa estão cansados, desgastados e com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Os reservistas encaram alistamentos ad hoc de meses a fio – alguns quase todo o tempo desde 7 de outubro. Deixaram famílias, filhos e trabalhos para trás para vestir de novo o uniforme militar. Mais de 800 soldados morreram e milhares perderam membros ou estão incapacitados de alguma forma.

Neste contexto, o não alistamento militar dos haredim se tornou um absurdo ainda maior do que já era antes de 7 de outubro. Por que jovens seculares e religiosos light precisam colocar suas vidas em risco enquanto jovens ultraortodoxos – extremamente religiosos – não correm risco algum? Por que os pais de crianças seculares ou religiosas light começam a temer o alistamento militar de seus filhos no momento em que eles nascem e os pais de ultraortodoxos não têm o mesmo temor?

Essa falta de igualdade é imoral e inconstitucional (apesar de não haver uma Constituição em Israel, apenas o que os israelenses chamam de Leis Básicas). Portanto, o que a Suprema Corte decidiu é que, sem uma lei que honre a lei básica da igualdade entre os cidadãos, os jovens haredim (homens e mulheres) devem ser imediatamente alistados. E quem não for, será considerado desertor. Pode ser preso (isso ainda não está claro, na verdade).

Os juízes deixaram claro que não estavam dizendo ao Estado quantos estudantes haredim (que estudam o Torá em yeshivot) devem ser recrutados e com que rapidez. Mas a decisão do tribunal também quer dizer que o Estado não deve mais financiar essas escolas rabínicas para estudantes que não prestam o serviço militar.

Tudo isso acontece agora é fruto de 75 anos de complexidade e ambiguidade em relação ao papel dos ultraortodoxos – e da religião, como um todo – em Israel. Eu já escrevi sobre isso aqui neste espaço, mas relembro. É conhecido que o serviço militar, em Israel, é obrigatório para todos os homens e mulheres de 18 anos desde a criação do país. Mas, na prática, a história é diferente e complicada. Na prática, a grande maioria dos jovens judeus ultraortodoxos nunca se alista. E isso enlouquece as famílias de jovens que mandam suas filhas e seus filhos para o exército sob o risco de não os receber de volta. Não há o que eles chamam de “Shivion Ba-Netel” (um fardo igual) para todos os jovens.

Esse assunto é um dos mais polêmicos e interessantes da História de Israel. De algo que, no começo, foi uma espécie de “favor” feito por David Ben Gurion para respeitar e acomodar os judeus mais religiosos, se tornou a principal exigência dos partidos ultraortodoxos, que usam o poder numérico – e a lealdade de seus eleitores – para pressionar governos a isentar seus jovens do serviço militar. Para eles, o exército é não só menos importante para a segurança nacional do que preces como é um perigo para a juventude.

Afinal, no exército há mulheres, há seculares, há ideias diferentes, televisões, smartphones… E os líderes haredim querem que seus jovens vivam na bolha haredi e não saiam dela. Que estudem as escrituras bíblicas de manhã até a noite e ponto. Enviar os jovens ultraortodoxos para o exército seria expô-los a influências externas, da modernidade, do secularismo.

Mas, manter milhares de jovens bitolados em uma bolha religiosa – quase uma seita, talvez… – seria o certo a fazer? Afinal, esses jovens também não aprendem matemática, inglês, física… Nada que os prepare para ter uma profissão e os ajude a manter suas famílias numerosas e contribuir para a economia nacional. Será que a economia de Israel sobreviverá a essa realidade quando os haredim forem 25% da população, em 20 anos? Será que é este o país que os israelenses querem?

Para esclarecer: sempre houve exceções no alistamento de jovens judeus. Mulheres grávidas, casadas ou que se dizem religiosas (entre elas, mulheres ultraortodoxas), quem tem problemas médicos ou psicológicos, quem tem antecedentes criminais graves, entre outros casos, não precisam se apresentar aos militares. Mas o que causa polêmica é o não alistamento de meninos saudáveis elegíveis. O problema são tentativas dos ultraortodoxos de evitar o alistamento de seus homens.

Quando Israel estava em seus primeiros anos, Ben Gurion aceitou fazer um acordo com os poucos ultraortodoxos que moravam no país. Os jovens que estudassem em yeshivás (internatos rabínicos) não precisariam se alistar caso estudassem os textos bíblicos (a Torá e outros textos judaicos). O nome do acordo era “Torató Omanutó” (em tradução livre: “Estudo da Torá como profissão”).

Ben Gurion não achou que isso seria um problema. Acreditava que era importante aceitar e respeitar todos os tipos de judeus como parte do recém-formado Estado de Israel. O que ele não tinha ideia é que o número de ultraortodoxos no país iria crescer exponencialmente. Hoje, eles são cerca de 13% da população do país, com expectativa de alcançar 25% em 2048, quando Israel completar 100 anos. Em 1948, os estudantes de yeshivá eram apenas 400, hoje são dezenas de milhares.

Mais de 15% dos soldados de 18 anos ou mais não se alistam sob a égide do “Torató Omanutó”. Algo em torno de 18 mil por ano. Na década de 1990, o Supremo Tribunal de Justiça de Israel decidiu que o acordo de Ben Gurion não era “constitucional” por causa da Lei Básica israelense que determina igualdade entre os cidadãos de Israel. Mas o Supremo adiou a aplicação da decisão para dar tempo ao governo para resolver o assunto legislando uma lei que agradasse a todos.

Aí começa a lista de “soluções” que não deram certo nos últimos 25 anos:

•             Primeiro, houve um comitê (o Comitê Tal), que fez recomendações em 2000 sobre um novo acordo. A Lei Tal, como ficou conhecida, foi aprovada pelo Knesset em 2002. Ela previa a continuação do arranjo “Torató Umanutó” sob condições específicas. Mas não acabou com a polêmica.

•             Em 2005, a então ministra da Justiça, Tzipi Livni, afirmou que a Lei Tal, que até então ainda não havia sido totalmente implementada, não fornecia uma solução adequada para o problema do recrutamento de haredim. Só 1.115 dos 41.450 alunos de yeshivot se apresentaram para o “ano de decisão” previsto na lei (período em que os haredim seriam expostos ao exército para decidirem pelo alistamento) e só 31 deles se alistaram posteriormente. Um número irrisório que tornou a lei totalmente ineficaz.

•             Em 2007, a Lei Tal foi prorrogada até agosto de 2012. Em janeiro de 2012, a Suprema Corte decidiu que ela era inconstitucional. Foi formado outro comitê, o Plessner, para formular uma nova solução, mas não conseguiu e foi dissolvido.

•             Uma nova lei, aprovada em 2014 e alterada em 2015, estabeleceu cotas de recrutas haredim para o exército e sancionou yeshivot que não atendem a essas cotas. Mas, novamente, em setembro de 2017, o Supremo considerou o projeto de lei inconstitucional, uma vez que a isenção concedida foi considerada muito abrangente e as cotas nunca foram realmente respeitadas pelas yeshivás.

•             O Supremo deu ao Knesset um ano – até 2018 – para alterar o projeto de lei, mas isso foi adiado 15 vezes devido às eleições recorrentes de 2019 a 2022. O último adiamento expirou em 30 de junho de 2023. Para evitar um caos no governo, já em turbulência por causa dos protestos contra a reforma judicial, a violência na Cisjordânia e outros assuntos, o gabinete da coalizão de governo aprovou, em 16 de junho, às pressas, a promessa de que irá formular um novo projeto de lei de recrutamento haredi até 31 de março de 2024. Até lá, o exército não recrutaria jovens haredim elegíveis.

•             Nesse “período intermediário” entre a expiração da lei atual até a aprovação da nova lei, o governo “instrui o ministro da Defesa” a não tomar medidas para recrutar homens haredim elegíveis, desde que “apresentem perante as autoridades aprovações de seus estudos em uma yeshivás com base nas necessidades e exigências do exército”. Quer dizer: o exército não emitiria cartas de alistamentos para os homens haredim, o que evitaria que fossem considerados “desertores” e presos.

•             Em 2023, o Supremo afirmou que aceitaria adiar uma decisão até março de 2024.

*             Agora, em 25 de junho de 2024, o Supremo disse que não podia adiar mais. Que os jovens haredim devem ser alistados. O atual governo, o mais religioso e direitista da História de Israel, ainda tem esperanças de legislar alguma lei que pelo menos adie isso. Recentemente, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu decidiu promover uma lei que havia sido apresentada no Knesset, o Parlamento em Jerusalém, em 2022 pelo ex-ministro da Defesa Benny Gantz. Mas o próprio Gantz disse que essa lei de 2022 não é relevante para a realidade de 2024, pós 7 de outubro.

Os haredim tentaram emplacar a ideia de uma nova legislação para isentar a grande maioria dos jovens haredim e, em troca, dar um “prêmio” aos jovens israelenses que se alistam. Os soldados ganhariam muitos benefícios, incluindo um soldo muito mais alto, para “expressar gratidão por seu serviço”. Mas isso significaria, na prática, a transformação do exército israelense de um “exército do povo” em um “exército profissional”, remunerando os soldados que se alistarem e isentando uma parte enorme dos jovens elegíveis. Mas isso fere o ethos nacional, a cultura tão intrínseca a Israel de que todos os judeus de Israel estão unidos no sofrimento, nos deveres, no arriscar a vida para a defesa do país.

Toda essa questão complicada encontra Israel num momento particularmente difícil, em que Netanyahu é praticamente um refém (sem comparação com os 120 reféns em Gaza, claro) de seus colegas de coalizão: partidos ultraortodoxos e de extrema-direita. Se ele aceitar a situação do alistamento dos haredim, seu governo pode cair (talvez, não é certo, porque os haredim sabem que nunca terão uma coalizão de governo tão bondosa para com eles como essa de agora).

Mas talvez nem os esforças maquiavélicos de Netanyahu para se manter no poder possam salvar esta coalizão após a decisão do Supremo. Alguns parlamentares de seu próprio partido, o Likud, desgostosos com o não alistamento de haredim, planejam refutar quaisquer propostas de lei dos partidos ultraortodoxos. Foi o que aconteceu recentemente com a “Lei dos Rabinos”, que propunha poder total a esses partidos para indicar rabinos para cidades pelo país (uma espécie de cabide de emprego religioso).

Portanto, este assunto é um dos mais explosivos e complicados da História de Israel. Pode influenciar a sociedade de inúmeras maneiras. Demais até para eu listar aqui. Um assunto que pessoas que se interessam por Israel deveriam tentar compreender para, só assim, alegar que têm algum conhecimento sobre Israel, seu povo e suas ansiedades.

Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.

(Foto: IDF Flickr)

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