Ariel Roemer
Em um episódio muito recente vivi uma situação tão ilustrativa do privilégio judaico-cristão que me espanta a infeliz coincidência do cenário montado. Usualmente, pouco me guio por minhas convicções intuitivas, mas, de alguma forma, parecia que uma armadilha estava montada.
É necessário fazer um breve comentário a fim de que esse ideário judaico-cristão que mencionei não fique tão difuso aos que não estão familiarizados com a discussão, antes de iniciar a crônica.
Quando me refiro a um privilégio judaico-cristão vale compreender que provavelmente o termo é contingencial e cambaleante, seja pela parte do privilégio quanto pela parte do judaico hifenizado com cristão. Isso, porque olhando em retrospectiva para a educação judaica que tive, não me parece razoável que façamos parte de uma tradição que recorrentemente na Europa nos colocava como uma questão pendente de solução. Ora, há algum sentido em incluir judeus nessa tradição? Será mesmo que o reconhecimento do judaico nesta tradição é definitivo? Quais judeus e judias são dignos de ser incluídos neste lugar privilegiado e quais tomam consciência disso? Vamos à crônica, pois penso que meu conhecimento histórico e teórico é limitado para responder a essas perguntas com assertividade, enquanto com uma estória cotidiana há mais o que refletir.
Como aguardado, o dia em Berlim amanheceu ensolarado e a realização de uma viagem por uma propagandeada cidade cosmopolita, onde a liberdade individual e o estado de bem-estar social parecem funcionar, seguia. Eu e meus pais iríamos encontrar primos distantes habitantes de uma região suburbana da cidade, não muito longe do Lago de Wannsee. Lá, pedalaríamos nas redondezas e realizaríamos um piquenique aprazível. Aos que conhecem um pouco da história, foi nas cercanias deste lago que um corpo de membros do governo nazista ligados à gestão de políticas raciais propôs a solução final para a questão judaica na Europa em 1942. O que consistiu na deportação em massa dos judeus europeus para campos de extermínio, estivessem eles em território sob controle alemão, ou não.
Nos encontramos com os tais primos, já mais velhos do que eu, ainda abaixo dos trinta, enquanto eles, bem estabelecidos na vida, vivem o seu sonho pequeno burguês, com três filhos que, fruto da série de migrações da família, dialogam no ambiente doméstico em apenas 4 línguas. Mesmo sentindo um desconforto com este encontro, não de maneira racional, me propus a conhecer esta parte da família, com a qual não tenho contato e que, de alguma forma, estava interessada em saber de minhas andanças através deste continente indefensável ao longo de meu mestrado.
Enquanto pedalávamos, iniciei uma conversa com o pai da família que, razoavelmente interessado, me pergunta o que eu fazia por lá, e especificamente na Polônia, − país onde resido atualmente e de onde parte de minha família tem origem − talvez uma escolha inusitada dentre tantas maravilhas que a União Europeia pode oferecer. Distraidamente lhe contei que estudo em um mestrado sobre migrações transnacionais – o que não diz muita coisa. Inclusive, o nome refinado possui mais serventia para evitar conversas profundas e conceituais do que para me gabar da complexidade que o tópico abrange numa Europa decadente. Ainda assim, esse primo, carregando uma de suas filhas numa espécie de compartimento, me pergunta o que eu entendo do assunto e o que eu estudava. Aparentemente ele estava interessado na parte complexa que eu desejava me esquivar somente para falar de minha experiência de estudante universitário.
Antes que eu começasse a responder, paramos rapidamente em frente a mansão onde foi realizada a dita Conferência de Wannsee. Aos parentes que seguiam no grupeto de bicicletas, a parada foi um aspecto sombrio daquele dia tão primaveril onde, através das árvores do jardim da dita mansão em estilo neoclássico, era possível ver o enorme lago com pessoas praticando remo, canoagem, velejando e desfrutando de uma paisagem tão ariana quanto possível. Nos vi como crianças entusiasmadas passeando em sua própria vizinhança sendo surpreendidas pela quase esquecida, ainda que célebre, casa mal-assombrada do bairro. Ninguém se atreveu a dar um passo em direção ao portão, tampouco pisar na calçada em frente à casa.
Finalmente entramos em uma pequena trilha de terra onde mais ciclistas domingueiros poderiam apreciar o seu dia de lazer. E enfim, minha conversa com este primo se iniciou. Talvez não importaria dizer o que lhe contei sobre os assuntos que me interessavam em meus estudos ou o que aprendi sobre a situação europeia em relação às pessoas migrantes, pois a torrente de impertinências que me foi despejada não procurou dialogar com o que eu dizia. A partir da vivência de um homem branco, ainda que judeu como eu, que havia migrado três vezes, escutei como havia uma boa professora na escola de seu filho que usava hijab e que estava tudo bem, porque ela era uma boa professora, mas que os turcos eram os piores da sala e que já fumavam aos 13 anos, o que talvez não demore muito para que seu filho faça, se já não o faz. Também tive que escutar como negros e árabes se colocam como vítimas recorrentemente ao invés de assumirem responsabilidades pelo que fazem, vindo de uma pessoa que provavelmente nunca foi responsabilizado por algo que não fez ao ser abordado pela polícia. E enfim, tive que escutar uma história bastante indigesta sobre quem ele denominou como ciganos, em um trem onde uma criança com no máximo seus 10 anos só parara de pichar o vagão em troca de um cigarro que a sua mãe fumava após pedidos desse homem combalido – portador apenas de sua civilidade. Pobre homem, como é difícil a ele, um bom convidado neste continente, compreender por que os outros não cumprem as regras dos bons anfitriões alemães. Ora, ao adentrar a casa de alguém não deveriam manter os seus próprios hábitos, mas abandoná-los. Afinal, para quê esses estrangeiros estão aqui se não querem ser como nós? Infelizmente, para este homem é difícil ter de lidar com tamanha selvageria. Ao que lhe respondi que preferia não seguir numa conversa se os termos usados fossem aqueles, afinal já fomos os selvagens. Hoje, este homem se vê pelo prisma do privilégio judaico-cristão, onde o judaico é uma concessão e uma admissão de culpa do cristão pós Holocausto. Enquanto ele se enganava escolhi ir embora, pois prefiro estar entre os selvagens. Afinal, vivemos de exílios como a diáspora negra, fomos expulsos da Península Ibérica como os árabes e fomos asfixiados como os povos Roma e Sinti.
Ariel Roemer é bacharel e licenciado em geografia pela USP e atualmente cursa o mestrado interdisciplinar Erasmus Mundus chamado MITRA (Migrações Transnacionais). Tendo vivido e trabalhado na comunidade judaica de São Paulo, costuma se questionar sobre a sua origem e os rumos de sua comunidade. Em sua pesquisa se dedica a estudar a territorialidade da diáspora Íidiche. Por enquanto, vive em Wroclaw, Polônia. É pesquisador no laboratório Judeidade e Decolonialidade, do projeto IBI no Campus, do Instituto Brasil-Israel.
Este texto não reflete necessariamente a visão do Instituto Brasil-Israel.
Foto: ExDigita/Flickr