Revital Poleg
Em discurso na semana passada no Congresso sobre o Estado da União, o presidente Biden declarou sua diretriz para o exército estabelecer um porto marítimo perto da costa de Gaza, capaz de entregar ajuda humanitária significativa. Ele afirmou explicitamente que nenhuma bota de soldado americano tocaria o solo de Gaza e destacou que “este porto temporário permitiria a entrada de uma quantidade enorme de ajuda humanitária em Gaza todos os dias”. Embora essa resposta vise atender a uma necessidade aguda diante da insatisfação norte-americana com o volume atual de ajuda entrando em Gaza, a duração esperada do projeto de várias semanas se encaixa em uma visão americana mais ampla para “o dia seguinte.”
O anúncio de Biden foi motivado por vários fatores: primeiramente, ele está profundamente preocupado com a situação em Gaza e acredita na necessidade de facilitar a entrada de ajuda humanitária em Gaza em uma escala maior do que atualmente, com uma dependência reduzida de Israel (apesar de se esperar que Israel permaneça responsável pelas inspeções de segurança). Em segundo lugar, a situação delicada do presidente nas pesquisas sobre as próximas eleições, a crítica significativa a ele dentro do Partido Democrata e na comunidade árabe-americana devido ao apoio inequívoco a Israel (apesar de suas crescentes reservas sobre Netanyahu), e sua confrontação com Trump, torna sua posição política desafiadora internamente e exige medidas que aparentemente equilibram a crítica contra seu apoio a Israel.
O conceito de estabelecer um porto marítimo perto da costa de Gaza, cuja construção espera-se que leve várias semanas, não é novo e foi considerado uma ideia controversa desde o início. Então, qual é a origem dessa ideia, quem realmente se beneficia dela e o que o estabelecimento desse porto significa em uma perspectiva estratégica mais ampla?
O conceito de construir um porto marítimo em Gaza data das primeiras discussões do Acordo de Oslo, tendo sido incluído no acordo preliminar firmado entre Israel e a OLP em 13 de setembro de 1993. O “Acordo Gaza-Jericó” de 1994 delineou que os planos para a construção do porto, incluindo sua localização e demais aspectos de interesse mútuo, seriam detalhados posteriormente, levando em conta os arranjos de segurança necessários e normas relacionadas aos trânsitos internacionais. Essa premissa foi reiterada no acordo interino de 1995. Contudo, as obras iniciadas no verão de 2000 foram paralisadas devido por causa da Segunda Intifada, e estão suspensas desde então.
O establecimento de segurança israelense inicialmente resistiu à ideia de construir um porto palestino em Gaza, temendo que pudesse facilitar a entrada de armas e terroristas. Segundo a doutrina de segurança de Israel, apenas as Forças de Defesa de Israel (IDF) têm capacidade para realizar inspeções efetivas de embarcações e cargas que entram no porto.
No momento atual, a criação do porto apresenta precedentes com implicações complexas. Grande parte da ajuda internacional, que é encaminhada por Israel, acaba sendo desviada pelo Hamas, e um montante significativa não alcança a população civil de Gaza. Mesmo a escassa quantidade de alimentos que chega aos depósitos da ONU não é distribuída de maneira eficiente, levantando a questão: quem pode assegurar que a ajuda que chegará no porto não sofrerá o mesmo destino? Contudo, a necessidade é urgente e incontestável.
Apesar das preocupações, a construção do porto atende ao interesse de Israel em evitar uma grave crise humanitária na Faixa de Gaza e, adicionalmente, beneficia Israel no cenário internacional. O mundo, que está exaustado fa guerra, esqueceu ‘como tudo começou’, e está ignorando os 134 reféns ainda em cativeiro do Hamas, e apontando acusações contra Israel.
Em seu discurso, Biden destacou a responsabilidade de Israel em proteger os inocentes em Gaza e enfatizou o direito de Israel em buscar a derrota do Hamas, prometendo às famílias dos reféns esforços contínuos até o retorno seguro de seus entes queridos.
Um editorial da Fox News, conhecido por sua postura crítica a Biden, questionou as “verdadeiras intenções” da administração americana com o projeto do porto: Aumentar a ajuda humanitária para Gaza poderia parecer um gesto de auxílio aos civis afetados pela guerra, mas, segundo o artigo, é parte de uma agenda mais ampla dos EUA para estabelecer uma relação bilateral e independente com os palestinos, distanciada da aliança americano-israelense. Essa perspectiva, segundo a Fox News, representa uma mudança radical na dinâmica tradicional entre EUA e Israel, incluindo o possível reconhecimento unilateral de um estado palestino. Essas afirmações, voltadas ao público conservador americano, também encontram eco na extrema-direita israelense, intensificando críticas problemáticas contra Biden e praticamente contra qualquer divergência de opinião.
Contrariamente, vejo essas ações de Biden como uma oferta de um novo horizonte político e de normalização para Israel, o que o atual governo hesita em buscar. Cabe a nós apoiar esses esforços para nosso próprio benefício.
O Hamas, por sua vez, pode até certo ponto “comercializar” o estabelecimento do porto marítimo, como uma vitória política para si, pois ajudará a trazer grandes quantidades de ajuda humanitária para a Faixa. Por outro lado, a iniciativa de Biden é interpretada em Gaza como a introdução de uma presença americana no enclave, e como uma jogada eleitoral do Presidente Biden tentando se salvar da queda esperada nas eleições presidenciais de novembro. Muitos em Gaza acreditam que o Presidente Biden deu esse passo para agradar a Arábia Saudita, e para empurrá-la em direção a um acordo de normalização com Israel, o que permitiria a ele apresentar uma conquista diplomática a seus eleitores. Oficiais do Hamas preocupados com o plano americano argumentam que esse passo infringe a soberania palestina na Faixa de Gaza, e é projetada para reduzir a crítica internacional aos “crimes de Israel contra o povo palestino”, dá luz verde a Israel para apertar o cerco sobre a região e poderia garantir a vitória das forças da IDF na guerra.
Desde que o Presidente dos EUA anunciou a iniciativa americana de levar ajuda a Gaza por meio de um porto marítimo, ainda não está claro como os mecanismos de implementação funcionarão na prática, especialmente em termos de entrada e distribuição da ajuda aos residentes necessitados. Enquanto a ajuda humanitária atual entra em Gaza de várias maneiras (por caminhões e lançamentos aéreos), existem inúmeras dificuldades que lançam dúvidas sobre a capacidade dessas iniciativas, incluindo a americana, de prevenir a fome da população local.
Em meio às camadas de manobras políticas e interesses, preocupações humanitárias, terror sangrento e guerra prolongada, a criação do porto marítimo surge como um teste internacional crítico para abordar a crise duradoura entre Israel e os palestinos, destacando a realidade complexa desta região marcada por tensões e dores.
Este texto não reflete necessariamente a visão do Instituto Brasil-Israel.
Foto: Flickr/Arne Hoel