Lula colocou as mãos num cabo de alta tensão

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Avraham Milgram

As relações de Lula, o PT e o Estado de Israel durante os longos, intermináveis e sofridos anos sob a liderança de Benjamin Netanyahu estiveram marcadas por melindres, tensões e, ultimamente, pelo ódio. O mesmo não se pode dizer das afinidades sociais e culturais dos israelenses pelos brasileiros. A tônica foi e continua sendo de simpatia e cordialidade. Mutatis mutandis nunca houve e tampouco poderia haver afinidades entre um líder sindical com filosofias universalistas de esquerda face a outro com políticas sionistas nacionalistas irredentistas de direita. Bibi se afirmou no poder após o assassinato de Itzhak Rabin para justamente contestar o processo embrionário que Rabin iniciou para dar fim ao conflito com os palestinos da Cisjordânia e Faixa de Gaza. De lá para cá, o processo não apenas foi contestado como enterrado. Contudo, na segunda década do nosso século, tanto um como outro pareciam priorizar práticas pragmáticas às ideológicas, passando por cima de suas disparidades. “O bem de todos e a felicidade geral das nações” pareciam ser mais importantes que suas doutrinas. A tal ponto que Lula foi o primeiro presidente brasileiro a visitar Israel, isso ocorreu em março de 2010. Lula estava orientado para o business e Israel tinha muito a oferecer-lhe em know-how e hi-tech. Para isso ele trouxe consigo uma enorme comitiva de ministros, governadores, industriais, empreendedores e homens de negócios. E como rege a praxe, todos, sem exceção, visitaram o museu do Holocausto no Yad Vashem. Lembro-me bem pois eu o acompanhei e o guiei durante a visita e a cerimônia em memória aos seis milhões de judeus assassinados pelos nazistas e seus cúmplices durante o Holocausto. Foi um ato honroso com a presença do presidente Shimon Peres e demais autoridades do Estado. A visitação de Lula tinha tudo para ser um sucesso não fosse o clima de desconfiança que pairava no ar pela vinda de Mahmoud Ahmadinejad, então presidente do Irã, ao Brasil quatro meses antes. Lula o recebeu em Brasília com toda a pompa devida à chefes de estado, à revelia dos EUA, de Israel e do mundo civilizado. Ahmadinejad não perdia oportunidade para negar o Holocausto e incitar à destruição do Estado de Israel, eram inegavelmente marcas registradas em qualquer podium, inclusive na ONU. Paradoxalmente, não havia mais oposto que o fundamentalista islâmico, misógino e ferrenho anti modernista iraniano e o líder do PT. A acolhida e o abraço de Lula com Ahmadinejad em novembro de 2009, em Brasília, repercutiu negativamente na mídia e governo de Netanyahu. Por mais que a diplomacia prescrevia ignorar o sacrilégio do encontro de Lula com Ahmadinejad, ele se fazia presente. A cada passo ele era questionado sobre as razões daquela visita ao Brasil. Inclusive, ou talvez principalmente, no Yad Vashem. 

Mas não ficou nisso. Lula aproveitou sua estadia em Israel para fazer uma visita oficial à Ramallah para encontrar o líder da Autoridade Palestina. Em se tratando de Netanyahu, o encontro com Abu Mazen pegou mal. Para se reparar (!), Lula foi solicitado a colocar uma coroa de flores sobre o túmulo de Theodor Herzl, o visionário do Estado Judeu, o que não ocorreu, principalmente porque, até então, nenhum outro chefe de Estado havia sido solicitado a fazê-lo. São sequelas que não desaparecem facilmente. Pelo contrário, recrudesceram exponencialmente à medida que a arrogância de Netanyahu tornara praxe face a seus rivais. Vimos isso há poucos anos quando ele apoiou incondicionalmente a Trump e o trumpismo. Sem titubear, com a maior das insolências, Bibi interveio na política interna dos EUA ao discursar no congresso americano contra os democratas. Pouco depois, ele repetiu a dose quando veio à Brasília aclamar a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018. Isso também não passou desapercebido nos setores liberais e de esquerda no Brasil e Israel. Netanyahu jamais demonstrou sensibilidade pelos interesses da judeidade da diáspora, apenas pelos seus próprios e dos que ele considera ser de interesse de Israel, que casualmente condizem com seus particulares. 

Lula, desde o seu primeiro governo (2003-2007), buscou projetar o Brasil nas diversas esferas internacionais e a ele próprio como um dos líderes dos países que não se encontram na esfera americana. Brasil não se encontra na África, mas Lula marcou presença na convenção da União dos Países Africanos, e lá impactou o mundo com sua errônea interpretação sobre a guerra entre Israel e Hamas em Gaza. Principalmente, por equiparar as operações militares de Israel após o massacre das hordas assassinas do Hamas contra a população civil das cidades e kibutzim (comunas rurais socialistas) no dia 7 de outubro de 2023 à Alemanha de Hitler e o apocalipse do extermínio do judaísmo europeu, conhecido como Holocausto. Lula não podia ser mais infeliz com essa visão inadmissível do ponto de vista histórico e perversa do ponto de vista moral. Lula não tem passado antissemita, assim como José Saramago, o nobel português, quando afirmou que as operações militares de Israel em Jenin, em 2002, eram “semelhantes às ações de Auschwitz nazista”. Perguntado, Saramago respondeu que apenas queria chamar atenção e produzir impacto. Nesse sentido, Lula foi mais bem-sucedido. Hoje, na era do populismo, pode-se dizer qualquer barbaridade sem escrúpulos. Donald Trump por exemplo, não paga impostos pelas suas improbidades, bem como ministros da extrema direita de Israel e fanáticos desses partidos políticos. Algumas destas “pérolas” constam da petição que a África do Sul apresentou contra Israel na Corte Internacional de Justiça em Haia. Eles eram conscientes de suas declarações simpáticas ao ouvido de seus eleitores. A de Lula também fez jus ao imaginário da extrema esquerda. 

Paradoxalmente, Lula prestou um grande serviço a Bibi Netanyahu, necessitado mais que nunca de estímulos para unir gregos e troianos. Lula tocou no ponto nevrálgico dos judeus de Israel e da diáspora. Sem escrúpulos, atingiu em cheio na sacralidade do Holocausto, que fez repercutir um raro momento de solidariedade entre israelenses fascistas e anti fascistas, democráticos e anti democráticos, esquerdistas e reacionários, promotores da paz com palestinos e colonizadores, seculares e religiosos, centro e periferia, pobres e ricos, ashkenazitas e sefarditas. Algo realmente raro na tão múltipla sociedade israelense, na qual não é raro encontrar dois judeus conversando na rua para em poucos minutos formarem quatro partidos políticos. O tiro saiu pela culatra também por haver fornecido munição à oposição bolsonarista.  

O pano de fundo da deplorável declaração de Lula se origina (a) nos melindres que ele e a cúpula do PT, certamente Celso Amorim, carregam há anos desde a visita que fizeram à Israel em 2010, (b) incompatibilidade com os governos israelenses fomentadores da ocupação militar nos territórios ocupados na Cisjordânia, (c) posturas tradicionais dogmáticas da esquerda latino-americana em geral e da brasileira em particular sobre tudo e todos envolvidos nas esferas norte americanas que inclui a percepção de Israel como paradigma categórico do colonialismo ocidental e (d)  ultimamente, com a radicalização das posturas das esquerdas em geral e da cúpula do PT em particular contra Israel a partir de 7 de outubro 2023. Ignorando os crimes perpetrados pelo Hamas, culpa apenas Israel pela guerra e por cometer um genocídio em Gaza idêntico aos crimes cometidos pela Alemanha de Hitler aos judeus. 

Contudo, e com grande pesar, ouso afirmar que o desempenho de Benjamin Netanyahu desde janeiro de 2023 é inúmeras vezes mais prejudicial a Israel e a sua sociedade que as declarações de Lula. Não fosse Bibi judeu, diria que ele é um dos maiores antissemitas da nossa época, por debilitar consciente e propositadamente a solidariedade entre israelenses, atacar e vilipendiar o sistema judiciário e instituições democráticas estabelecidas em 1948, promover a discriminação entre cidadãos judeus e árabes, priorizar setores improdutivos com verbas estatais causando a sua não integração no mercado de trabalho, além de desestabilizar a economia do país. Acima de tudo, Netanyahu é o grande culpado pela negligência da população civil no sul de Israel em 7 de outubro. 

Este texto não reflete necessariamente a visão do Instituto Brasil-Israel.

Foto: Flickr/Ricardo Stuckert

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