Daniela Kresch
TEL AVIV – As Forças de Defesa de Israel (FDI) publicaram no último dia 7 de fevereiro um plano que prevê o aumento do serviço militar obrigatório em Israel por causa da guerra contra o grupo terrorista palestino Hamas, no Sul do país, e possivelmente contra a guerrilha libanesa Hezbollah, na fronteira Norte.
Se, antes de 7 de outubro de 2023, havia um plano de encurtar o serviço militar de soldados homens dos atuais 32 meses para 24, tudo mudou. As mudanças propostas incluem o aumento dos termos do serviço militar obrigatório masculino e das mulheres soldados em combate e outras funções especiais para três anos. Desde 2015, os homens cumpriam “apenas” dois anos e oito meses. As mulheres atualmente servem por dois anos, combatentes ou não.
O exército também planeia aumentar a idade de reforma do serviço de reserva para 45 anos para reservistas regulares, 50 para oficiais e 52 para quem serve em funções especiais. A quantidade de tempo exigido pelos reservistas para servir por ano também aumentaria de só por alguns dias para muitas semanas.
Além de deixar claro para os israelenses que era uma ilusão de que o país, aos 75 anos, poderia diminuir os anos de alistamento ou ter apenas um exército “pequeno e inteligente” porque Israel enfrentava menos guerras, o plano ecoou em uma das mais doloridas feridas abertas da sociedade israelense: o não recrutamento de jovens ultraortodoxos (haredim, em hebraico) e de árabes (não incluindo os beduínos e os drusos, que se alistam). Os dois setores, juntos, são algo em torno de 33% dos israelenses. Os haredim são 12% da população e os árabes (muçulmanos e cristão), 21%.
Quer dizer que dois terços dos jovens israelenses terão que servir mais tempo, se colocar em perigo de morte e o outro um terço não? Será que os haredim podem continuar a não se alistar sob justificativa de que têm que apenas estudar Torá? No caso dos árabes-israelenses, não seriam eles também cidadãos iguais do país, com os mesmos direitos e também deveres? Não há o que se chama de “Shivion Ba-Netel” (um fardo igual) para todos os jovens, que arriscam suas vidas nas Forças de Defesa de Israel (FDI).
Neste artigo, vou falar apenas do caso dos haredim. O dos árabes-israelenses tem outra complexidade e vou falar disso em uma outra oportunidade.
No caso dos haredim, até quando os ultraortodoxos poderão viver no Estado de Israel sem enviar seus filhos para o exército para defender esse Estado? Até quando poderão receber todas as benesses do Estado em que nasceram e vivem e, ao mesmo tempo, perpetuar um ethos de anti-Estado, que Israel é fruto de uma autodeterminação de judeus seculares e, portanto, contra o “verdadeiro judaísmo”?
As perguntas não querem calar na sociedade israelense.
O líder da oposição e do partido Yesh Atid, Yair Lapid, expressou indignação e fez um apelo aos ministros Benny Gantz e Gadi Eisenkot para que não se oponham ao novo plano que eleva o tempo de alistamento: “Não pode ser que dois ex-chefes de Estado-Maior fiquem de braços cruzados enquanto centenas de milhares de jovens haredim, necessários para o exército, permaneçam isentos”, disse Lapid.
O atual chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Herzi Halevi, afirmou que o serviço militar obrigatório deve se aplicar a toda a sociedade israelense: “Em tempos desafiadores como estes, uma coisa é muito clara – todos devem fazer sua parte para proteger nosso lar. Este é um momento diferente, e as realidades anteriores devem ser reexaminadas”.
Até dentro do próprio Likud, ministros e parlamentares se indignaram. Mas, quem conhece a sociedade israelense sabe que esse embate interno não é novo. O que é novo é que, com a guerra, pode ser que alguns entendam que as desculpas pré-7 de outubro não colam mais.
No começo da guerra, parecia haver uma mudança nos ultraortodoxos em relação ao exército. Yanki Deri, 40 anos, um dos 8 filhos de Arieh Deri, líder do Shas, um tradicional e grande partido ultraortodoxo sefaradita, até se alistou. Cerca de 500 homens haredim se voluntariaram por dez dias (algo simbólico, mas importante). Mas o que parecia ser uma tendência, passou rápido.
Tudo isso acontece agora é fruto de 75 anos de complexidade e ambiguidade em relação ao papel dos ultraortodoxos – e da religião, como um todo – em Israel. Listo, abaixo, informações que já escrevi antes neste espaço para contextualizar:
• Sempre houve exceções no alistamento de jovens judeus. Mulheres grávidas, casadas ou que se dizem religiosas (entre elas, mulheres ultraortodoxas), quem tem problemas médicos ou psicológicos, quem tem antecedentes criminais graves, entre outros casos, não precisam se apresentar aos militares.
• Mas o que causa polêmica é o não alistamento de jovens de 18 saudáveis elegíveis porque eles são haredim e as tentativas dos ultraortodoxos de evitar o alistamento de seus homens, que data da época do primeiro primeiro-ministro de Israel, David Ben Gurion.
• Quando Israel estava em seus primeiros anos, Ben Gurion aceitou fazer um acordo com os poucos ultraortodoxos que moravam no país. Os jovens que estudassem em yeshivot (internatos rabínicos) não precisariam se alistar caso estudassem os textos bíblicos (a Torá e outros textos judaicos). O nome do acordo era “Torató Omanutó” (em tradução livre: “Estudo da Torá como profissão”).
• Para esses judeus extremamente religiosos, estudar Torá o dia todo é uma carreira e é mais importante do que pegar em armas. Afinal, é Deus que protege os judeus, para eles. Mais do que qualquer soldado. Por exemplo, em 1991, na época da 1ª Guerra do Golfo, folhetos espalhados por cidades e bairros ultraortodoxos diziam “Tehillim neged Tilim” (“Salmos contra mísseis”). Quer dizer: para evitar ataques contra Israel bastava rezar.
• Ben Gurion não achou que seria um problema aceitar essa exceção. Ela acreditava que era possível respeitar todos os tipos de judeus como parte do recém-formado Estado de Israel. O que ele não tinha ideia é que o número de ultraortodoxos no país iria crescer exponencialmente. Hoje, eles são cerca de 12% da população do país, com expectativa de alcançar 25% em 2048, quando Israel completar 100 anos.
• Se, em 1948, os estudantes de yeshivá eram 400, hoje são dezenas de milhares. Mais de 15% dos soldados de 18 anos ou mais não se alistam sob a égide do “Torató Omanutó”.
• Na década de 1990, o STJ de Israel decidiu que o acordo de Ben Gurion não era “constitucional” por causa da Lei Básica que determina igualdade entre os cidadãos – igualdade entre os jovens que põem suas vidas em risco e os que não o fazem. Mas o Supremo adiou a aplicação da decisão para dar tempo ao governo para resolver o assunto. Aí começa a lista de “soluções” que não deram certo, nos últimos 25 anos.
• Primeiro, houve um comitê (o Comitê Tal), que fez recomendações em 2000 sobre um novo acordo. A Lei Tal foi aprovada pelo Knesset em 2002. Ela previa a continuação do arranjo “Torató Umanutó” sob condições específicas. Mas não acabou com a polêmica.
• Em 2005, a então ministra da Justiça, Tzipi Livni, afirmou que a Lei Tal, que até então ainda não havia sido totalmente implementada, não fornecia uma solução adequada para o problema do recrutamento de haredim. Só 1.115 dos 41.450 alunos de yeshivot haviam se apresentado para o “ano de decisão” previsto na lei (período em que os haredim seriam expostos ao exército para decidirem pelo alistamento) e só 31 deles se alistaram posteriormente. Um número irrisório.
• Em 2007, a Lei Tal foi prorrogada até agosto de 2012.
• Em janeiro de 2012, a Suprema Corte decidiu que ela era inconstitucional. Foi formado outro comitê, o Plesner, para formular uma nova solução, mas não conseguiu e foi dissolvido.
• Uma nova lei, aprovada em 2014 e alterada em 2015, estabeleceu cotas de recrutas haredim para o exército e sancionou yeshivot que não atendem a essas cotas.
• Em setembro de 2017, o Supremo considerou o projeto de lei inconstitucional, uma vez que a isenção concedida foi considerada muito abrangente e as cotas nunca foram realmente respeitadas pelas yeshivot.
• O Supremo deu ao Knesset um ano – até 2018 – para alterar o projeto de lei, mas isso foi adiado 15 vezes devido às eleições recorrentes de 2019 a 2022. O último adiamento expirou em 30 de junho de 2023.
• Em 16 de junho de 2023, às pressas, o governo aprovou a promessa de que irá formular um novo projeto de lei de recrutamento haredi até 31 de março de 2024. Até lá, o exército não recrutaria jovens haredim elegíveis e nem os prenderia como “desertores”.
Com mais um deadline chegando, foi formulada uma nova proposta de isentar a grande maioria dos jovens haredim do exército e, em troca, dar um “prêmio” aos jovens israelenses que arriscam suas vidas pelo país. Os soldados ganhariam muitos benefícios, incluindo um soldo muito mais alto, para “expressar gratidão por seu serviço e reduzir a desigualdade no serviço”.
Isso significaria, na prática, a transformação do exército israelense de um “exército do povo” em um “exército profissional”, remunerando os soldados que se alistarem e isentando uma parte enorme dos jovens elegíveis. E isso fere o sentimento nacional, a cultura de que todos os israelenses estão unidos no sofrimento, nos deveres, no arriscar a vida para a defesa do país.
Na prática, há quase um consenso entre os não-haredim de que a realidade é absurda e injusta, principalmente depois do começo da guerra, quando cerca de 700 soldados morreram em 4 meses de luta. Mães não dormem bem com medo de receber a notícia de que seus filhos caíram. Já os pais de filhos haredim dormem tranquilos quando pensam em seus filhos em casa.
Há momentos em que a realidade fica insustentável. Esse é um deles.
Foto: Flickr/IDF