Daniela Kresch
TEL AVIV – É necessário começar este texto dizendo o óbvio ululante, porque alguns ainda se esquecem: os israelenses são seres-humanos. Não são robôs, ciborgues, o ChatGPT ou qualquer outra inteligência artificial. Eles sentem revolta, medo e tristeza. Os israelenses também não são um grupo de replicantes homogêneos. Alguns, após 7 de outubro, quando o grupo terrorista palestino Hamas realizou o maior atentado nos 75 anos do país, assassinando barbaramente mais de 1.200 homens, mulheres, crianças e idosos e sequestrando 240, querem revanche. Outros acham que esse não é o caminho. Seres-humanos. Falhos, como nós.
Outro detalhe óbvio: Israel é uma democracia, na qual há vozes com opiniões com as quais não concordamos e até achamos terríveis. Há também quem diga coisas que amamos e com as quais concordamos de coração.
Dito tudo isso, vamos ao dia 28 de janeiro. No domingo passado, milhares de ultranacionalistas religiosos, 90% homens, se reuniram em Jerusalém para o que chamaram de “Conferência para a Vitória de Israel”, um evento em prol da volta dos assentamentos israelenses na Faixa de Gaza. Para quem não lembra, Israel se retirou unilateralmente de Gaza em 2005, retirando todos os seus soldados do território e evacuando forçadamente todas as 21 colônias judaicas que havia lá, onde viviam 8.600 israelenses.
Para os colonos, é um trauma vivo e doloroso. A grande maioria dos israelenses, no entanto, foi a favor da retirada.
Na tal conferência, em meio a danças e discursos inflamados, os ultranacionalistas – muitos deles colonos evacuados em 2005 – clamaram pela volta das colônias em Gaza (o grupo de assentamentos era chamado de Gush Katif) após a atual guerra contra o Hamas. Diziam que, sem a presença israelense em Gaza, o resultado é o Hamas e seus imitadores. Sem controle israelense de Gaza, o resultado é o terrorismo. Para eles, o 7 de outubro foi a prova cabal disso. A guerra seria, então, é uma “oportunidade para consertar o erro” de 2005.
Nessa conferência, os discursos foram radicais e terríveis para ouvidos do centro e da esquerda israelenses. Até para ouvidos de direitistas mais moderados. Discursos que causam náusea. O ultranacionalista ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, do partido de extrema-direita “Otzma Yehudit” (Força Judaica), pediu não só a recolonização de Gaza por Israel. Ele disse que Israel deveria “encorajar a emigração voluntária” de palestinos para outros lugares no mundo. Seria “vontade de Deus”.
O clima das pessoas presentes, que vivem em uma bolha ultranacionalista e messiânica, um culto fantasioso descolado da realidade geopolítica e das leis internacionais, foi de arrepiar. Principalmente dois dias depois do primeiro veredito do Tribunal Internacional de Justiça em Haia, que julga Israel por “genocídio” contra os palestinos. E uma das “provas” da intenção de Israel em cometer esse suposto genocídio seria falas como essas de ministros.
“Israel recebeu um cartão amarelo em Haia. Estamos sob investigação pelo crime mais terrível do mundo e temos tudo para provar que, na realidade, não cometemos genocídio. Nesse contexto, não podemos sequer pensar nessas ideias perigosas”, diz o professor Itamar Mann, especialista em direito dos refugiados da Universidade de Haifa. “Esta conversa sobre emigração voluntária é sinônimo de deportação em massa, uma proibição absoluta pelo direito internacional”.
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não foi. É verdade que não emitiu nenhum comunicado contrário, mas, perguntado por repórteres numa entrevista coletiva no dia seguinte se é a favor de novas colônias judaicas em Gaza, ele disse claramente: “não”.
A tal conferência é problemática e preocupante. Principalmente por causa do atual governo do país, no qual o Likud, o partido direitista de Netanyahu, é o mais à esquerda da coalizão. Netanyahu precisa dos radicais de seu governo para se manter no poder. É preocupante, também, a influência que esse tipo de pensamento pode ter sobre parte do público israelense, o que está com o Hamas engasgado na goela e acha que “vingança” é a melhor solução.
Isso explicaria o resultado de uma pesquisa de opinião divulgada pelo Canal 12 da TV israelense (e realizada pelo Instituto Midgam). Perguntados se apoiavam a “renovação dos assentamentos judaicos em Gaza”, 38% disseram que sim. Um percentual enorme para uma questão que estava fora de qualquer realidade ou consciência de Israel há 18 anos.
Mas, para o jornalista Ben Caspit, um dos ícones do jornalismo responsável em Israel, esse percentual de 38% não é real. Muitos que disseram concordar com novas colônias em Gaza só falaram da boca para fora, por dor e ódio ao Hamas. Como eu disse, seres-humanos vivem o trauma nacional e não sabem o que fazer com sua dor. Então, respondem positivamente a algo assim.
“Muitos responderam só por raiva. Mas, no momento que souberem o que isso custaria a Israel geopoliticamente, financeiramente, moralmente e em vidas humanas, voltarão atrás”, ponderou Caspit.
Uma ideia como essa só deve mesmo ecoar, na prática, junto a eleitores de Ben Gvir e do outro partido ultranacionalista do governo, o Sionismo Religioso do ministro da Economia Bezalel Smotrich. Segundo outra pesquisa de opinião, os dois partidos receberiam, hoje, 12 cadeiras das 120 do Knesset: 10%. Digamos que radicais de outros partidos, até mesmo do Likud, se unam a eles. Acho que estamos falando aqui em algo como 15%. Esse seria o núcleo duro da extrema-direita pró novos assentamentos. Algo como o percentual que ainda apoia Bolsonaro no Brasil.
Agora, para o lado positivo: na pesquisa do Canal 12, sobre a renovação de assentamentos em Gaza, 51% dos israelenses se disseram contra. A maioria, apesar de tudo. Ao que parece, democracias vivem num momento em que 51% são uma vitória.
Israel é uma democracia. Vozes como essas serão ouvidas – e farão mal a Israel no mundo. Mas ainda há vozes – mais vozes – que lutam contra cultos messiânicos e governos golpistas. Certamente essas vozes não podem se calar, têm que ser ecoadas na busca por moderação, consenso, humanidade. Apesar de tudo. Acima de vinganças vazias. Buscar uma visão de futuro melhor para israelenses e palestinos, dois vizinhos que não vão para lugar nenhum.
É por isso que, juntamente com não passar pano para ultranacionalistas, é preciso também destacar as outras vozes. É o caso de Benny Gantz, do Campo Nacional, visto como o próximo primeiro-ministro em todas as pesquisas de opinião desde 7 de outubro, disse: “A participação dos ministros e membros da coalizão na conferência prejudicou a sociedade israelense durante a guerra. Prejudicou a nossa legitimidade no mundo, prejudicou os esforços para criar um quadro para o regresso dos nossos reféns. Netanyahu, este não é o momento de falar com a base, mas de agir por toda a nação”.
O ministro Gadi Eisenkot, do partido de Gantz, também condenou a conferência como “um evento que divide a sociedade israelense e aumenta a desconfiança no governo”: “Todos os que participaram não aprenderam nada com os acontecimentos do ano passado, sobre a importância de ações com amplo consenso nacional e solidariedade”.
O líder da oposição, Yair Lapid, também criticou duramente o evento: “É uma vergonha para Netanyahu e para o seu partido, que já esteve no centro do discurso nacional, mas agora está sendo arrastado sem rumo atrás dos extremistas”.
Em suma, os israelenses têm sentimentos e alguns querem vingança. Alguns acolhem as soluções fáceis dos ultranacionalistas messiânicos. Isso não acontece só em Israel, como se viu no Brasil em 8 de janeiro de 2023 e nos EUA em 6 de janeiro de 2021.
Mas eles são minoria e isso precisa ser dito. É claro que há preocupação. Mas há esperança. Atualmente, a popularidade do Likud e de Netanyahu está na maior baixa em décadas. Se as eleições fossem hoje, Gantz venceria com 37 das 120 cadeiras do Knesset. O Likud ficaria apenas com 18 (metade do que tem hoje). No final das contas, o grupo pró-Netanyahu receberia apenas 47 cadeiras (o mínimo para formar um governo é 61). O grupo anti-Netanyahu liderado por Gantz teria 68 assentos.
Foto: Flickr/Suhair Karam-IRIN