Daniela Kresch
TEL AVIV – Entre um boato e outro sobre um possível novo acordo para a libertação dos 136 reféns sequestrados pelo grupo terrorista palestino Hamas no fatídico 7 de outubro, os israelenses enfrentam o maior dilema dos 75 anos de história do país. Eles estão divididos entre dois caminhos terríveis. De um lado, há os que defendem que o governo faça de tudo para libertar os sequestrados que já estão no cativeiro há mais de 100 dias, aceitando todas as condições impostas pelo Hamas para tal. De outro, há os que acreditam que negociar com o Hamas seria renunciar à dissuasão, fortalecendo os terroristas e assegurando que outros “7 de outubros” aconteçam, em curto, médio ou longo prazo.
Segundo uma pesquisa recente do Centro Viterbi para Opinião Pública e Pesquisa de Políticas do Instituto de Democracia de Israel, a maioria dos judeus-israelenses (60%) pensa que não é certo que Israel concorde com um acordo para a libertação dos reféns em troca da soltura de todos os mais de 7 mil presos palestinos e da cessação dos combates em Gaza (essas são as condições do Hamas). Entre os árabes-israelenses, o quadro é inverso: a grande maioria (78,5%) apoia esse tipo de acordo.
A favor ou contra, todos sabem que o preço de cada um dos caminhos é horrível, mas consideram que a outra opção é ainda pior. Aceitar as condições do Hamas seria mantê-lo no poder em Gaza e incentivar outros grupos terroristas a atacar e sequestrar israelenses. Não aceitar as condições do Hamas seria sacrificar os reféns que ainda estão vivos, abrindo mão do acordo tácito entre o país e seus habitantes de que ninguém nunca será deixado para trás. Se correr o bicho pega, se ficar…
O lado mais apaixonado, no momento, é o dos que clamam por um acordo de soltura imediata dos reféns. Custe o que custar. Ele é liderado pelos parentes dos 136 sequestrados – principalmente dos cerca de 100 que provavelmente ainda estão vivos. Não há como não se solidarizar com a dor dessas pessoas, principalmente em meio a um turbilhão de informações e relatos de maus tratos e dos horrores sofridos pelos pouco mais de 100 reféns que tiveram a sorte de ser libertados no acordo de novembro, que incluiu um cessar-fogo de uma semana, a libertação de 3 presos palestinos em troca de cada refém devolvido e o envio de toneladas de combustível para Gaza.
Para esses parentes, amigos e apoiadores, os reféns estão com os dias contados: sem comida, água, tratados com violência, tortura física e psicológica. A pior situação é a das meninas e mulheres jovens, de 17 a 30 anos, que podem estar sendo violentadas continuamente por seus algozes. Suas mães, desesperadas, choram e se desesperam nas TVs e rádios. E se algumas delas estiverem grávidas de seus sequestradores? O caso dos idosos que ainda estão no cativeiro também é tenebroso: eles estão há mais de três meses sem remédios, sem o mínimo de tratamento que os idosos precisam nessa fase da vida.
Se nos primeiros meses após o 7 de outubro esses parentes não se manifestaram por medo de atrapalhar negociações entre Israel e o Hamas, agora eles estão nas ruas em protestos, marchas e eventos diários. Acreditam que o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu apoia o outro lado, o campo que considera o menor dos males sacrificar seus entes queridos – mesmo que não diga isso com todas as letras. Eles acreditam, também, que Netanyahu tem outros interesses em mente, principalmente se manter no poder e escapar da prisão nos 3 casos de corrupção em que está envolvido.
Diariamente, nas últimas semanas, grupos de manifestantes têm protestado em diversos lugares do país. Nesta quarta-feira, 24 de janeiro de 2024, quando escrevo estas linhas, houve protestos com milhares de pessoas em pelo menos quatro locais. O principal deles foi em Tel Aviv, onde cerca de 5 mil pessoas bloquearam por alguns minutos a Estrada Ayalon (espécie de Marginal Tietê de Tel Aviv).
Não se via nada assim desde os protestos contra a reforma jurídica de Netanyahu, que mobilizaram o país de janeiro até as vésperas do 7 de outubro. Em vez de gritarem “Vergonha, vergonha!” (“Bushá, bushá”, em hebraico), como era de praxe nos protestos de antes, os gritos eram de “Acordo, acordo!” (“Isská, isská”).
Um dos protestos mais polêmicos, no entanto, aconteceu na passagem de Kerem Shalom, na fronteira com a Faixa de Gaza. É por essa passagem que entram os cerca de 150 caminhões diários com mantimentos e produtos em geral para a população de Gaza, 80% dela deslocada de suas casas. Os manifestantes bloquearam por algumas horas a passagem dos caminhões, alegando que, enquanto Gaza receber essa ajuda humanitária, a cúpula do Hamas não terá interesse algum em libertar os reféns israelenses.
Eles também querem a libertação dos reféns, mas acreditam que ela só acontecerá quando o Hamas se sentir pressionado, como aconteceu em novembro diante da violenta ofensiva israelense em Gaza. Naquele momento, o líder do Hamas em Gaza, Yahya Sinwar, só aceitou o cessar-fogo de uma semana e a libertação de mais de 80 reféns porque a situação do grupo estava terrível em meio às bombas israelenses.
Mas, desde então, Israel diminuiu o ritmo dos ataques em Gaza, pressionado pelo presidente americano, Joe Biden, o único líder do mundo que se colocou do lado de Israel desde 7 de outubro e tem pagado um preço interno pesado, perdendo o apoio de muitos dentro do Partido Democrata. Biden exigiu que Israel diminuísse o ritmo dos ataques para diminuir as vítimas civis palestinas e se comprometesse com a transferência de toneladas de ajuda humanitária diariamente. Um dos resultados é, certamente, menos mortos palestinos. Outro é que o Hamas conseguiu se reorganizar e sobreviver. Não sente pressão ou tem incentivo para libertar os reféns a não ser sob suas condições.
E o que o Hamas, afinal, quer em troca dos reféns? A fórmula que Sinwar colocou sobre a mesa desde 7 de outubro é a mesma que está sobre a mesa hoje: “todos por todos”. Ele quer a libertação de todos os mais de 7 mil palestinos detidos em cadeias israelenses em troca dos 136 reféns (vivos ou mortos). Isso significaria que Israel teria que soltar das prisões do país TODOS os presos palestinos que foram julgados e condenados por terrorismo há décadas. Assim, o Hamas se consolidaria como o líder e representante dos palestinos.
Sei que tem gente que, erroneamente, acha que esses presos palestinos foram detidos por “nada” e “nunca foram julgados”. Que são só “meninos que jogaram pedrinhas” e “não fizeram mal a ninguém”. Nada mais errado. Mais de 1.500 israelenses foram assassinados em ataques terroristas desde os Acordos de Oslo, em 1993. Ataques suicidas em ônibus, restaurantes, etc. Há em Israel um sistema judicial organizado e reconhecido. Todos os presos têm advogados e passaram por julgamentos. Sim, sim, Israel é um país como todos os outros: com muitos erros. É possível discutir muitos aspectos desses julgamentos e das condições carcerárias, sem contar todas as questões políticas do conflito entre Israel e palestinos. Mas os condenados são mantidos em prisões com condições melhores do que em muitos países (incluindo o Brasil).
Sinwar também quer, em troca dos reféns israelenses, que Israel desista da guerra em Gaza. Saia de Gaza e tudo volte a ser como era em 6 de outubro. O Hamas e seu governo autoritário continuariam oprimindo os 2 milhões de palestinos de Gaza e atacando o Sul e o Centro de Israel com foguetes e outras ações como a de 7 de outubro de tempos em tempos.
Aí entre o dilema do campo que é contra um acordo “custe o que custar”. Como Israel poderia manter o Hamas no poder em Gaza após o 7 de outubro e a promessa do próprio Hamas de repetir o ataque que matou mais de 1.200 pessoas e feriu mais de 10 mil? Como aceitar abrir as portas de suas prisões e libertar todos os condenador por terrorismo, incluindo os próprios terroristas que realizaram o 7 de outubro?
Yahya Sinwar foi libertado num acordo desses após ser condenado a prisão perpétua por terrorismo em 1989. Foi um dos 1.027 presos palestinos libertados em troca de um só soldado, Gilad Shalit, em 2011. Por causa desse acordo de troca com preço tão alto é que Sinwar acredita que, agora, poderá libertar todos os presos palestinos em troca de 136 reféns.
Para quem é contra se curvar ao Hamas, o acordo de Shalit e os que aconteceram antes dele, em última instância, levaram ao 7 de outubro. Caso haja mais um acordo deste tipo agora, de 136 por 7 mil, quanto incentivo grupos terroristas como o Hamas e a Jihad Islâmica teriam para realizar novos massacres e sequestros? Muito incentivo.
O dilema dos israelenses é terrível, assim como a realidade pela qual o país passa. Pessimismo, tristeza diária com centenas de soldados mortos em Gaza, com os milhares que perderam braços e pernas na guerra e com os sequestrados que continuam no cativeiro. Problemas políticos internos – nem entrei nesse assunto… – acusações de genocídio em Haia, aumento do antissemitismo no mundo. Os israelenses estão cansados. A palavra certa é fadiga.
Sei que há leitores que dirão: “os palestinos de Gaza sofrem mais”. A eles eu digo: comparações e competições de dor são incongruentes numa guerra. A dor de um lado não anula a do outro. Só isso.
Foto: YossiPik/WikimediaCommons