Os motivos que levaram a África do Sul a acusar Israel em Haia

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Daniela Kresch

TEL AVIV – Eu não costumo usar este espaço para divulgar textos alheios em sua totalidade ou apenas traduzir artigos ou reportagens. Mas vou abrir uma exceção desta vez para compartilhar um material incrível sobre a ação da África do Sul contra Israel por “genocídio”, que foi levada na semana passada ao Tribunal de Justiça Internacional de Haia. Preciso dividir com o leitor um episódio esplêndido do podcast diário israelense “Ehad Beyom” (Um por dia), do Canal 12 da TV israelense. Eu cito este podcast algumas vezes porque é realmente bom e fico chateada de ele ser apenas em hebraico.

Por isso, decidi traduzir e compartilhar (com pouca edição) o episódio de segunda-feira, 15 de janeiro, com o embaixador Alon Liel, 75 anos, o entrevistado do dia do simpático apresentador Elad Simchayoff. Alon Liel é ex-embaixador de Israel na África do Sul e escreveu dois livros sobre o país e seu relacionamento com Israel. É um dos maiores especialistas no assunto do país. Ele ajuda a explicar por que a África do Sul se prestou a esse papel de acusar Israel por genocídio em meio a uma guerra terrível na qual Israel comete erros, mas certamente não tem intenções genocidas.

Alon Liel foi diretor-geral do Ministério das Relações Exteriores (2000-2021) e, quando se aposentou, se tornou uma das maiores vozes pela solução de dois Estados para dois povos. Ele também esteve por trás de uma tentativa não-governamental de negociação de paz com a Síria. É conhecidamente de esquerda e até se envolveu em polêmicas ao defender o boicote de produtos israelenses por causa da ocupação de territórios palestinos. 

Sugiro a leitura até o final para entender como chegamos a esse ponto, qual a ligação dos sul-africanos com os palestinos e porque, agora, é tão importante para o governo do Congresso Nacional Africano (CNA) se colocar diante dos holofotes e atrair a atenção mundial. Aí vai:

ELAD SIMCHAYOFF – A África do Sul abriu uma frente jurídica, uma verdadeira frente de batalha, contra Israel. O que isso significa para o relacionamento entre os dois países?

ALON LIEL – Eu ainda não daria à África do Sul o título de país inimigo. Mas há uma forte hostilidade. O partido no poder, que governa sem parceiros de coalizão, é adepto totalmente ao BDS, é muito hostil a Israel e isso afeta as decisões do parlamento e as decisões do governo. 

SIMCHAYOFF – É preciso contextualizar. Voltemos à década de 80, um período interessante na relação entre nós e os sul-africanos. Na época, Alon Liel recebeu a gestão do Gabinete da África do Sul no Ministério das Relações Exteriores de Israel. A África do Sul estava mergulhada no regime do apartheid e o Congresso Nacional Africano (CNA), que lutava contra o apartheid, era considerado uma organização terrorista ilegal. Nelson Mandela ainda estava na prisão. Como era, na época, a relação entre Israel e a África do Sul?

LIEL – Estávamos numa aliança militar com a África do Sul. Nós, os diplomatas profissionais do Ministério das Relações Exteriores, não sabíamos o escopo, mas sabíamos que se tratava de uma ligação militar porque víamos muitas críticas na imprensa mundial de que Israel estaria vendendo armas à África do Sul. Quando Shimon Peres se tornou chanceler, em 1986, dissemos a ele que, na nossa estimativa, o apartheid cairia em entre 5 e 7 anos. Já o Ministério da Defesa dizia que levaria 30 anos. De qualquer forma, fui incumbido de iniciar contatos com os oponentes do apartheid, caso realmente o governo caísse.

SIMCHAYOFF – Naquela altura, estar em contato oficial com o regime do apartheid era algo incomum no mundo?

LIEL – O mundo ocidental mantinha relações diplomáticas com a África do Sul. Ela era considerada parte do Bloco Ocidental, que então lutava contra o comunismo nas décadas de 1970 e 1980. Outros países ocidentais também vendiam armas ao país, mas através de empresas privadas. Nós vendíamos enquanto governo, mas não éramos os únicos a vender.

SIMCHAYOFF – Por que, se a avaliação já era de que o regime do apartheid iria cair e a pressão internacional já começava a crescer, continuamos em contato com o governo e a vender armas?

LIEL – Esta é uma boa pergunta. A tese principal é que nossas indústrias de defesa não poderiam sobreviver se tivessem apenas um cliente chamado Forças de Defesa de Israel (FDI). Para atingir um nível que fosse internacional no desenvolvimento de armas, precisávamos de grandes investimentos. Tínhamos que exportar 80% do que produzimos. Em algum momento, começamos a desenvolver uma dependência da África do Sul para comércio e desenvolvimento de armamentos. Nosso estabelecimento de segurança ficou “viciado” nisso. Mas devo dizer que era tudo em segredo. Não saíamos dizendo que negociávamos com o regime do apartheid. Ninguém sabia, nem dentro de Israel.

SIMCHAYOFF – Havia, então, uma luta entre os militares e a diplomacia relativamente à questão básica de que lado apoiar nas relações com a África do Sul, o regime do apartheid ou o movimento que lutava contra ele. Os diplomatas defendiam a atitude de que os rebeldes eram o futuro próximo em que deveríamos investir neles.

LIEL – No final de 1986, começou uma luta interna dentro do governo. Era o governo de rotação entre o Partido Trabalhista e o Likud. Mas Yossi Beilin, que era secretário do governo, conseguiu convencer o gabinete a aprovar duas decisões – em março de 1987 e setembro de 1987 – contra o regime do apartheid. Isso fez a balança pender em prol dos opositores. De fato, aderimos às sanções europeias, embora chamássemos de “medidas”, não de “sanções”. Isso surpreendeu o governo da África do Sul, na época.

SIMCHAYOFF – Em meio de tudo isso, Alon Liel foi instruído a tentar estabelecer os laços iniciais de Israel com o CNA, os oponentes do apartheid, com o entendimento de que, no futuro próximo, eles seriam o governo. Como foi?

LIEL – Foi um grande desafio. Tive de convencer o pessoal do CNA de que existia um grupo em Israel, especialmente o Ministério das Relações Exteriores, que admitia que estávamos errados ao longo dos anos e que queríamos mudar. Começamos a explicar que existia um lobby contra a ligação militar entre nós e a África do Sul. E assim começámos a construir ligações com pessoas da luta contra o apartheid.

SIMCHAYOFF – Em 1990, tudo realmente mudou. Nelson Mandela foi libertado após 27 anos de prisão. A África do Sul começou uma transição. Em 1992, Alon Liel, que era cônsul de Israel em Atlanta, foi convidado a assumir novamente o setor, só que desta vez como embaixador de Israel em Pretória. 

LIEL – Foi um sonho para mim, porque entre 86 e 89 trabalhei nessa ligação com os opositores. A minha condição era a de que eu iria trabalhar com grupos pretos. Decidimos que eu, o embaixador, trabalharia apenas com os pretos e meu vice, Shmuel Ben Shmuel, trabalharia apenas com os brancos. Tomamos essa decisão porque era impossível trabalhar em conjunto com ambas as partes.

SIMCHAYOFF – A embaixada, então, estava em contato simultâneo com o governo da época e com seu adversário ferrenho. A embaixada israelense simplesmente dividiu-se fisicamente em duas. Como foi isso?

LIEL – Quando falo isso hoje para as pessoas, é inimaginável! Dividimos a embaixada em duas partes. Pela porta da direita, você ia até os diplomatas civis e, pela da esquerda, você ia até os adidos militares. Eu não ia ao lado deles e eles não iam ao meu lado. Por que isso? Porque, se eles recebessem algum general sul-africano e eu, algum ativista preto, eles não se encontrariam dentro da embaixada.

SIMCHAYOFF – O objetivo de Alon Liel era, agora, se encontrar com Nelson Mandela. Ele achou que levaria muito tempo, mas foi rápido…

LIEL – Aconteceu um milagre. Quando cheguei à África do Sul, em novembro de 1992, recebi um convite para um coquetel. E aí uma senhora idosa se aproximou de mim e eu sabia que ela e o marido eram amigos de Mandela desde a escola. Eu disse a ela que era o novo embaixador, que estava lá para mudar a posição política de Israel e que, se ela pudesse dizer isso a Mandela, seria ótimo. Três dias depois, o telefone tocou às 6 da manhã e ela estava na linha dizendo que “Madiba” queria falar comigo. Eu não sabia o que era Madiba, mas rapidamente entendi que era o apelido do Mandela. E ele estava na linha! Me disse que sua secretária iria me ligar às 11h para marcar uma reunião entre nós. Fiquei embasbacado. Ao chegar à embaixada, disse que Mandela tinha me ligado às seis da manhã. Acharam que eu era louco. Mas, às 11h, o telefone tocou e sua secretária marcou uma reunião para nós na sexta-feira em seu escritório. Conversamos por pelo menos uma hora e meia. Foi o primeiro encontro de muitos.

SIMCHAYOFF – E como foi essa primeira reunião?

LIEL – Achei que ele iria gritar comigo, mas primeiro ele me fez uma pergunta: “Porque você não trouxe um fotógrafo”? Eu disse que pensava ser uma reunião secreta. Mas não era. Ele tinha duas mensagens principais. A primeira era sobre a questão bilateral. Ele disse: “desde que fui libertado da prisão, apenas dois países no mundo não me convidaram para uma visita, Israel e Gana”. Depois, ele passou para a questão palestina e disse: “sabemos o que vocês têm feito aqui todos esses anos, sabemos que vocês armaram o exército que enfrentamos, mas temos algo mais importante agora. Se vocês permitirem que os palestinos obtenham sua liberdade, como o que acontecerá conosco em breve, abriremos uma nova página. Se houver um Estado palestino, as relações entre a África do Sul e Israel serão boas. Se não, serão péssimas.

SIMCHAYOFF – Como você explica a importância que Nelson Mandela deu à questão palestina? 

LIEL – É muito fácil para mim explicar por que ouvi isso dele muitas vezes pessoalmente. Ele dizia o seguinte: “Nos 27 anos em que estive na prisão, só 3 líderes no mundo que se preocuparam com o meu destino e os seus nomes são Yasser Arafat, Fidel Castro e Muammar Gaddafi. Todos vocês, os grandes democratas, me viam como terrorista. E eu não esqueço meus amigos. Não esqueço a atitude do povo palestino em relação a mim e como eles vincularam seu destino ao nosso”. Mandela certamente via a sua luta contra o apartheid como diretamente relacionada à luta palestina contra Israel ou contra a ocupação.

SIMCHAYOFF – Então, Mandela era grato a Arafat. Mas não era só isso. Mandela traçou semelhanças entre a luta anti-apartheid e a luta palestina, tanto que ele disse que a sua liberdade não seria completa até que não houvesse liberdade para os palestinos. 

LIEL – Não há dúvida de que ele e seus companheiros viam o domínio branco que os oprimia como um regime colonial e racista que os humilhava da forma mais sistemática e maligna possível. E viam a ocupação e as colônias como um abuso semelhante do povo palestino. Muitas pessoas ao redor de Mandela também viam o próprio fato de o Estado de Israel ter sido estabelecido “sob os auspícios dos britânicos”, na sua visão, como uma espécie de movimento colonialista. Mas ele estava realmente pronto para virar a página conosco porque a sua atitude para com o povo judeu tinha outro ângulo muito importante. Ele também me contou outra coisa: “Quando estávamos na luta, quando eu estava nos porões, os únicos ‘brancos’ que vi ao meu redor eram judeus”. Penso que ele estava muito aberto a ter um novo tipo de relacionamento conosco porque conhecia o povo judeu deste ângulo também.

SIMCHAYOFF – Há outra citação de Nelson Mandela que os anti-Israel preferem menosprezar, na qual ele diz que reconhece o sionismo como um movimento nacional judaico legítimo, reconhece o direito de Israel de existir dentro de fronteiras seguras. Mas no espírito sul-africano, Nelson Mandela é recordado como um defensor dos palestinos, um parceiro pleno na sua luta. Em Ramallah, há a Praça Nelson Mandela com uma estátua de Nelson Mandela. E em Haia, no Tribunal Internacional de Justiça, na saída do salão onde ocorreu a audiência na semana passada, há uma estátua de Nelson Mandela. Mas tudo isso foi um processo que levou tempo.

LIEL – Sim, essa deterioração durou 25 anos. Foi muito gradual. Na época de Mandela, Oslo ainda estava em sua cabeça. Mas, no início do século houve a Segunda Intifada e, depois dela, começamos a construir um muro. O público israelense foi perdendo o interesse no processo de paz, embora tenha havido uma certa volta em 2007 e 2008, com Olmert e Tzipi Livni. Na última década, desde que as coalizões israelenses de Netanyahu removeram o termo “dois Estados” dos acordos de coalizão, a deterioração piorou. Os sul-africanos estão em contato quase diário com os palestinos. Eles viram tudo isso e viram o fortalecimento das colônias e da extrema-direita. Nos últimos três anos, eles se conectaram ao BDS. O partido no poder toma decisões que apoiam o BDS e lentamente isso chega ao parlamento. Há algumas semanas, tomaram a decisão de expulsar o embaixador israelense e fechar a embaixada. E tiraram todos os seus diplomatas daqui.

SIMCHAYOFF – Mas não é só responsabilidade de Israel. Os representantes da África do Sul realmente justificam o Hamas. O ex-prefeito de Joanesburgo, por exemplo, publicou uma foto sua com uma arma e disse que apoiava o Hamas. O Hamas não é definido como uma organização terrorista na África do Sul e não é que apoie apenas os palestinos. As mensagens de organizações que procuram destruir Israel realmente ressoam. Este processo no Tribunal Internacional de Justiça de Haia é um presente para o Hamas. Por que fizeram isso?

LIEL – A democracia na África do Sul é, pelo menos até agora, um fracasso. A enorme euforia internacional com a vitória e a presidência de Mandela foi realmente uma celebração democrática internacional. Mas a festa acabou. O governo se deteriorou a ponto de uma terrível má gestão, de corrupção, de quase disfunção. São só 4 horas de eletricidade por dia. Há longos períodos de interrupção da água. Então, penso que Haia é uma tábua de salvação para o governo sul-africano. Os remete aos grandes dias de Mandela. Eles apareceram no tribunal com lenços nas cores da bandeira, como se celebrassem a democracia, mesmo tendo praticamente destruído a sua democracia nos últimos 30 anos. Essa ação proporcionou a eles um regresso à arena internacional, com suas reivindicações contra Israel que se pareciam com as que eles faziam contra o apartheid.

SIMCHAYOFF – Então, há aqui interesses políticos de um partido falido que está conduzindo o país para uma crise. Um partido que, embora no poder há décadas, ainda se vê como um movimento revolucionário. Um partido que agora tenta se reabilitar com a ajuda da ação judicial contra Israel. Dito tudo isto, há alguma chance de que haja uma relação razoável entre Israel e a África do Sul no futuro?LIEL – Pode anotar e eu assino embaixo: Não tenho dúvidas de que poderá haver uma reconciliação e até um novo período de glória para as relações entre os dois países. Isso se o povo palestino conquistar a sua liberdade. Morei na África do Sul por anos e fui lá muitas vezes. Estou em contato com a comunidade judaica de lá há 40 anos. Não existe e nunca houve antissemitismo na África do Sul. Por isso, digo que há um futuro, tanto para as relações da África do Sul com o povo judeu como para as relações com Israel. Mas, atualmente, temos um muro que impede isso: o nosso confronto difícil e sangrento com os palestinos.

Foto: Flickr/Flowcomm

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