Jack Khoury
Haaretz, 14/01/2024
Tradução livre de João Koatz Miragaya
Em Israel e em todo o mundo hoje são recordados os 100 dias de guerra, mas, para além do aspecto simbólico e da influência midiática do número, ele não é um divisor de águas. Do ponto de vista do público – israelense e palestino – a expectativa é de que o 101º dia seja bastante semelhante, e o mesmo acontecerá com os dias seguintes. Continuaremos vendo as ações e os ataques na Faixa de Gaza, que causarão mais destruição e ceifarão mais vidas. Do lado israense, prevê-se que as perdas continuem, principalmente de soldados, bem como a continuação dos protestos das famílias dos reféns. No Norte, espera-se que a escalada contra o Hezbollah continue, e na Cisjordânia os ataques das forças de segurança aumentarão.
E assim, ninguém ficará surpreso se os 100 logo se transformarem em 200. O próprio primeiro-ministro Benjamin Netanyahu diz isso e, de qualquer forma, para os palestinos não são apenas 100, mas mais 365 dias em termos de gestão da campanha. Mais um ano perdido. Ambos os lados já enfrentaram crises intermináveis e alguns conflitos frontais – mas, no passado, a par de tudo isto, havia pelo menos a opção de um acordo. De esperança.
Embora o acordo não esteja realmente em cima da mesa há anos, o que é particularmente deprimente desta vez é a volta do discurso da aniquilação mútua. Grande parte da discussão no Tribunal Internacional de Justiça em Haia também girou em torno deste eixo. No final de 100 dias de combates, a maioria do público israelense é refém de um conceito – continuar destruindo o Hamas e agindo militarmente para resgatar os reféns, porque o que não funcionar através da força, vai funcionar com o uso de ainda mais força. Aparentemente, nenhum assunto que envolva colapso humanitário, fome e a propagação de epidemias na Faixa de Gaza mudará esta situação.
O lado palestino também é refém da sua própria concepção, e se recusa a aceitar a afirmação de que a ação israelense na Faixa de Gaza é uma resposta proporcional às atrocidades sofridas pelas populações próximas à fronteira. Muitos dos habitantes de Gaza e da Cisjordânia acreditam que Israel tenta executar um amplo plano de extermínio e deportação, e esperam que o que não aconteceu na Nakba de 1948 seja executado agora. Mesmo entre os palestinos, qualquer pessoa que se atreva a falar sobre negociações políticas é vista como delirante.
Este sentimento não é apenas consequência dos acontecimentos, mas também resultado de uma crise de liderança. Ambas as nações enfrentam uma grave crise de liderança, cada uma pelas suas próprias razões e circunstâncias. Para comprovar a falta de confiança nas lideranças, basta olhar para os resultados das pesquisas realizadas nas duas populações. Na verdade, algo semelhante também se aplica ao presidente dos EUA, Joe Biden. Nenhum dos três líderes é visto como alguém que pode ou quer mudar a realidade. As expectativas de Abbas são de fato diferentes daquelas que podem ser dirigidas a Biden e Netanyahu, mas a liderança em Ramallah também é obrigada a dar respostas e esclarecer quais são seus planos para o dia depois da guerra.
Os três líderes estão contando seus dias a nível político, mas nós – as duas nações – permanecemos aqui, com esperança, nos próximos 100 anos. Para começar a viver o futuro, apesar da dor, vale lembrar que a história entre as duas nações não começou no dia 7 de outubro e nem vai parar aí. Chegou a hora de lutar para acabar com o capítulo da guerra e pensar em como será possível superar o horror, apesar da dor. Para isso, é preciso exigir a libertação dos reféns, mesmo que na proposta “todos por todos” (todos os reféns israelenses por todos os presos palestinos – nota do tradutor) e liderar um movimento internacional que criará um plano para o futuro. Numa primeira fase, deve incluir eleições e um plebiscito – em ambos os lados – sobre as futuras fronteiras, e desta forma proporcionar um espaço de vida definido para os palestinos, mesmo que temporário, apenas para oferecer um horizonte para um acordo.
Até aquele sábado amaldiçoado, os israelenses tiveram tempo para celebrar 75 anos de independência – e os palestinos recordaram os 75 anos da Nakba. Os 100 dias de guerra ficarão de fato registrados nos livros de história, mas serão ofuscados pela marca de 100 ou mais anos de conflito. Devemos escolher agora se nessa situação, nós e os nossos filhos choraremos por mais vítimas e destruição, ou se nos lembraremos daquelas vítimas cuja morte criou esperança e tornou a vida possível para as gerações futuras.
Jack Khoury é jornalista, árabe de cidadania israelense.
Foto: Flickr/Cau Napoli Collettivo