Três reféns mortos e a tragédia do fogo amigo

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Daniela Kresch

TEL AVIV – Em meio às compras no supermercado, na última sexta-feira, dia 15 de dezembro, ouvi uma conversa entre dois cabisbaixos israelenses. Um deles perguntava: “será que não podemos ter uma boa notícia que seja? Não aguento mais só ouvir sobre morte e destruição desde 7 de outubro”. O outro aquiesceu. “Sim, está pesado demais”. Algumas horas depois, pouco antes do começo do shabat, os dois israelenses tiveram que lidar com uma das piores notícias desde o começo da guerra contra o Hamas: a admissão oficial do exército de que três reféns israelenses foram mortos por engano por tropas de Israel em Gaza.

Se alguém perguntasse qual seria o cenário mais trágico no que tange a questão dos reféns levados de Israel pelo Hamas em 7 de outubro (que atualmente contabilizam 129 homens, mulheres e crianças, israelenses e estrangeiros), seria difícil esboçar algo assim. Como podem as próprias forças de segurança de um país matar três sequestrados no momento em que uma das maiores prioridades da incursão militar do país é justamente o resgate destes sequestrados? 

Como pode isso acontecer num momento em que as famílias dos reféns se manifestam nas ruas pedindo uma solução para seus entes queridos? Num momento em que os israelenses choram pelas crianças da família Bibas, pelas soldadas que podem estar sendo violadas sistematicamente, pelos jovens do festival de música Nova que foram raptados enquanto dançavam, pelos idosos que minguam no cativeiro? No momento de dilema inconcebível para a liderança de Israel: fazer tudo o que o Hamas pede em troca dos reféns, arriscando fortalecer esse grupo terrorista, ou continuar a guerra para acabar definitivamente (se é que isso é possível) com a ameaça militar do Hamas, mesmo que isso signifique, possivelmente, sacrificar os reféns?

Trata-se de uma das piores tragédias deste conflito, um escândalo, do ponto de vista dos israelenses. Um baque no estômago. Mais uma ferida aberta sobre feridas que ainda não cicatrizaram. Os ecos do que aconteceu reverberam neste momento e vão reverberar por décadas. As perguntas são muitas e imensas. Como isso pode ter acontecido?

Segundo as informações oficiais da imprensa local, com base no relato do próprio exército e outras fontes, os três reféns, Yotam Haim, Samar Talalka e Alon Shamriz, conseguiram escapar do cativeiro na cidade de Shajaiya (pronuncia-se Sha-dja-í-a), um dos principais redutos do Hamas no Norte de Gaza. Eles ficaram algum tempo escondidos e quando perceberam que tropas israelenses se aproximavam, decidiram sair à luz do dia e se entregar. 

Eles tomaram precauções para isso: tiraram as camisas para os soldados não suspeitassem que tinham bombas no corpo, levantaram os braços e acenaram com um pano branco para anunciar que sua intenção era pacífica. Afinal, sabiam que eram três homens e que, aos olhos das tropas, poderiam parecer suspeitos. Eles saíram do prédio onde se escondiam e foram em direção aos soldados.

Mas, em vez de serem recebidos de braços abertos e com alegria, foram baleados. Os soldados mataram dois deles rapidamente. O terceiro conseguiu voltar para o prédio para se refugiar. Mas os soldados foram até o prédio e atiraram nele. Não notaram que, nas paredes do prédio, havia panos onde os reféns tinham escrito, em hebraico: “Socorro” e “3 reféns”. Só depois de terem matado os três é que os soldados perceberam o erro trágico.

Um erro que leva a muitas perguntas terríveis. Perguntas que os israelenses fazem a suas forças de segurança e exigem respostas: como podem soldados atirar em três homens sem camisa, com braços para o alto e acenando com bandeiras brancas? Quais são as regras de engajamento quanto a isso? Afinal, não se atira em pessoas desarmadas, que não ameaçam as tropas e claramente estão se entregando. E se fossem três palestinos, jornalistas estrangeiros, crianças? Também teriam sido alvejados? 

Há aqui duas questões principais a serem debatidas. A primeira diz respeito às regras oficiais das Forças de Defesa de Israel. Não, não se atira em pessoas com bandeiras brancas, com mãos para o alto e que não configuram ameaça. Está errado. Os soldados que abriram fogo violaram os protocolos das FDI.

O chefe do Estado Maior das Forças Armadas, Herzi Halevi, deixou isso bem claro ao falar a soldados após a tragédia: “Se vocês veem duas pessoas com as mãos para cima e sem camisa – esperem dois segundos. E não menos importante, se forem dois habitantes de Gaza com uma bandeira branca para se render, atiramos neles? Absolutamente não. Absolutamente não. Mesmo os combatentes, após largarem as armas e levantarem as mãos, nós os capturamos, não atiramos”. 

Então, oficialmente, os soldados claramente violaram as regras militares. Ok. Espero que fique claro para os odiadores de Israel que não se trata de uma política oficial. Não é “atira e depois pergunta”. Digo isso porque há bastante gente pelo mundo (gente demais) que realmente acredita sempre nas más intenções de Israel. E isso é um eco claro do antissemitismo clássico: os judeus seriam “traiçoeiros” e “desleais”. Com base nesses preconceitos absurdos e generalizações infundadas, muitos judeus foram perseguidos e mortos nos últimos milênios.

Mas aí entramos na segunda discussão. Se Israel se gaba de ter as forças de segurança mais “morais” do mundo (imagino que muitos países sem gabem disso também), como isso pode ter acontecido? A resposta é a seguinte: numa guerra, o medo e o temor subvertem a racionalidade e a prudência. São segundos para tomar uma decisão. É adrenalina na veia. É medo. Medo de morrer. Não é à toa que existe um termo para os erros cometidos por tropas contra seus próprios colegas em guerras: fogo amigo. 

O fogo amigo é uma das maiores causas de morte em conflitos. Surge da “névoa da guerra” – a confusão inerente à guerra. Pode ser causado por erros de identificação, imprudência ou incompetência, mas também por outros problemas. No caso das tropas israelenses em Gaza, isso é agravado pelo fato de que os combatentes do outro lado não usam fardas ou uniformes. Eles se vestem como civis e usam civis como escudos humanos. Há relatos de homens com bandeiras brancas que se aproximam das tropas como se fossem se entregar e cometem ataques suicidas com bombas escondidas. 

No caso de lutas contra terroristas – que não respeitam as leis internacionais de engajamento –, um lado é cobrado a seguir essas regras e não atirar em pessoas que parecem desarmadas. Mas, o outro lado não respeita essas regras. Usa bandeira branca para se aproximar e matar – ou coloca seus próprios cidadãos com perigo usando-os como escudos humanos. E, ao contrário do que os antissemitas de plantão acreditam, os israelenses se parecem muito com os palestinos. Não é, aqui, uma batalha entre “brancos” e “pretos”. Tanto que os soldados israelenses atiraram contra seus próprios cidadãos sem saber quem eram.

O fato de os terroristas abusarem do protocolo de rendição também causa mortes entre seus próprios civis, já que todos passam a ser suspeitos e todos correm mais risco de serem mortos pelos soldados – certos de que todos podem ser uma ameaça. 

“Tento me colocar na cabeça do soldado em Shajaiya”, disse o general Herzi Halevi. “Depois de dias de duros combates, batalhas corpo a corpo, encontros com terroristas vestidos à paisana, que chegam de várias maneiras enganosas. Ele deve estar alerta e pronto para qualquer ameaça. Uma decisão numa fração de segundo pode resultar em vida ou morte”.

O entendimento quanto ao fogo amigo é grande em Israel, tanto que não há, por aqui, a percepção de que os soldados que atiraram por engano em Yotam Haim, Samar Talalka, and Alon Shamriz devem ser presos (deveriam, aliás). Ninguém os culpa por, depois de um mês em Gaza, lidando com franco-atiradores do Hamas, abrir fogo contra suspeitos. Há um certo incômodo, no entanto, em relação aos comandantes que monitoraram a ação. 

Ninguém pensou em preparar seus soldados para o cenário de algum refém escapar e vir em direção às tropas? Isso é um escândalo e deverá ser estudado pela cúpula militar. Essa possibilidade deveria ter sido aventada para que pelo menos os comandantes em campo tivessem a capacidade de pensar nesse cenário. Após a morte dos dois primeiros reféns, os comandantes deveriam ter parado e pensado no que ocorreu e ter percebido as paredes com palavras em hebraico. 

Finalmente, se Israel afirma que faz tudo para não alvejar civis palestinos, os comandantes não deveriam ter orientado os soldados a “esperar dois segundos”, como disse o Herzi Halevi? Mas a ideia de uma “guerra limpa”, que os israelenses tanto acreditam, parece ser mais uma intenção louvável do que uma realidade absoluta em campo. Novamente: eu acredito na intenção dos militares israelenses de poupar inocentes. Mas em que medida a realidade segue o wishful thinking?

Obviamente, não sou especialista militar ou estrategista. Longe disso. Mas, para mim, a conclusão é óbvia: guerra é uma coisa ruim. É confusa, é injusta, é triste. Soldados nervosos e estressados, em meio ao fog da guerra, com medo e diante de um inimigo que usa bandeiras brancas para atacar, tendem a atirar mais rápido. E erros trágicos vão acontecer. Não só com pobres reféns que quase alcançaram a liberdade, mas com civis palestinos que só queriam sobreviver. É tudo muito trágico.

Foto: Foto/FDI

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