Daniela Kresch
TEL AVIV – Na atual guerra entre Israel e Hamas, discute-se muito o papel, a posição e a responsabilidade da ONU. E, particularmente, o envolvimento e a tendência anti-Israel da agência da ONU para os palestinos, a UNRWA. Há muitos relatos de armas e munições encontradas dentro de escolas ou clínicas da UNRWA em Gaza. Muitas histórias de funcionários da UNRWA atuando lado a lado com terroristas do Hamas (para dizer o mínimo). Um dos sequestrados israelenses recentemente libertados, um menino de 12 anos, disse que passou 50 dias como refém no porão da casa de um funcionário da UNRWA.
Trata-se de um assunto delicado e antigo. O papel da ONU no conflito entre israelenses e palestinos é discutido desde 1947, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o Plano de Partilha da Palestina do Mandato Britânico (uma região que hoje corresponderia ao que hoje é Israel – sem as Colinas do Golã –, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza). No Brasil, todos sabem do papel desempenhado por Osvaldo Aranha na sessão que aprovou o Plano de Partilha.
O plano estabelecia dois Estados para dois povos – judeu e árabe – nessa região até então controlada pela Grã-Bretanha e onde moravam, na época, 1,2 milhões de pessoas, sendo um terço judeus (600 mil) e dois terços árabes (1,2 milhão). O plano foi redigido para ser justo após diversas delegações terem sido enviadas à região para detectar onde havia mais judeus e onde havia mais árabes. A divisão foi feita com base nesses agrupamentos.
Sabemos que os judeus aceitaram e criaram o Estado de Israel, em maio de 1948. Os árabes nunca aceitaram e declaram guerra. Para os palestinos, a ONU é culpada pela criação de Israel e, por isso, tem que se responsabilizar por isso. A UNRWA seria, então, uma espécie de punição para as Nações Unidas: vocês fizeram de Israel uma realidade, agora paguem. Sejam responsáveis pelos palestinos. (Aliás, uma incongruência: os países do bloco árabe também foram contra a criação da UNRWA, na época, porque ela exigia o reconhecimento de Israel.)
A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) foi criada pela Assembleia Geral da ONU em 1949 com objetivo de dar assistência e proteção aos então cerca de 700 mil refugiados palestinos que foram deslocados (fugiram ou foram expulsos) de suas casas com o fim do mandato britânico na Palestina e a criação do Estado de Israel, em 1948.
A UNRWA é a única agência ligada à ONU que lida apenas com um povo espalhado por cinco localidades (Gaza, Cisjordânia, Líbano, Síria e Jordânia) e tem mandato para dar status de refugiados para filhos, netos, bisnetos e etc dos refugiados originais. Tem 30 mil funcionários – 99% locais, que dizer, palestinos.
A outra agência, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) lida com todos os outros refugiados do mundo e conta com um quarto das pessoas: com 7,2 mil funcionários profissionais e internacionais. O objetivo da ACNUR é assentar os refugiados como cidadãos plenos dos países onde estão. Então, o número de refugiados em uma determinada crise sempre cai porque a ACNUR ajuda a que se tornem cidadãos em algum lugar.
E é aí o coração do problema. Esse não é o objetivo da UNRWA. Pelo contrário: a ideia é manter os palestinos com status de refugiados. Os 700 mil refugiados palestinos originais nunca foram assentados, parcial ou totalmente, nunca se tornaram cidadãos (ou cidadãos plenos) em nenhum país. Hoje, os filhos, netos e bisnetos são os 6 milhões de pessoas registrados como refugiados na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, na Jordânia, no Líbano e na Síria. Trata-se da única população de refugiados do mundo que nunca diminui. Só aumenta.
A UNRWA teria, nesse sentido, um papel político de manutenção conflito com Israel. Manutenção de refugiados nesta condição.
“Isto também ocorre porque a definição legal de refugiado está em constante mudança”, disse Michal Hatuel-Radoshitzky, professora da Escola de Ciência Política da Universidade de Tel Aviv e membro fundador do Fórum Deborah, Mulheres na Política Externa e Segurança, no podcast “Ehad Beyom” (Um por dia), do canal 12 de Israel.
“A definição de refugiados palestino está basicamente enraizada no passado, o que significa que não importa se esse refugiado é uma pessoa rica, se é um homem próspero, tem um emprego. Ele ainda é considerado um refugiado. Ou seja, é uma espécie de status que é garantido a ele pelo fato de ser seu bisavô ele esteve na Palestina entre 1946 e 1948 anos e perdeu sua fonte de renda e sua casa”.
Os 1 milhão de palestinos que moram no Líbano e na Síria não são cidadãos desses países. São mantidos como “refugiados” mesmo que eles, seus pais e seus avós tenham nascido no Líbano e na Síria. Não podem comprar terras, ser funcionários públicos e nem ir a universidades. Não podem nem se casar com libaneses ou sírios “reais”, só entre eles. São mantidos em campos separados com o objetivo de mantê-los na condição de refugiados.
Os mais de 2 milhões de palestinos da Jordânia são sim cidadãos jordanianos, mas ainda são contados como “refugiados” pela UNRWA, que se responsabiliza por diversos serviços básicos deles, como educação e saúde. Eles são cidadãos, mas estudam em escolas separadas.
“Na verdade, essas pessoas são simplesmente uma ferramenta em algum tipo de luta política”, diz Michal Hatuel-Radoshitzky.
A UNRWA é, então, uma organização estranha. Na Faixa de Gaza, é ainda mais. Nas escolas da UNRWA em Gaza, por exemplo, os livros escolares desumanizam israelenses e judeus, não reconhecem a existência de Israel e incitam à violência. Afinal, o Hamas é quem dita o que será estudado.
O Hamas também acha que, como citei antes, a ONU, como culpada pela criação de Israel, é que deve fornecer saúde e bem-estar social para os habitantes de Gaza. Não é à toa que líderes do grupo terrorista têm dito, atualmente, que o dinheiro que o Hamas arrecada, recebe de doadores internacionais ou contrabandeia é para comprar armas e construir infraestrutura terrorista. Todo o resto, a ONU é que forneça aos moradores de lá. O Hamas governa Gaza, mas não teria responsabilidade alguma nisso.
Em 2015, eu entrevistei o ex-porta-voz da UNRWA na Cisjordânia, Chris Gunness, que negou as alegações, afirmando que a agência respeita “uma rigorosa diretriz sobre neutralidade” nos locais onde atua e que nunca houve casos de desvio de doações na Faixa de Gaza. “Nossa posição em relação a isso é a mesma de qualquer empregador em qualquer lugar do mundo: os funcionários deixam a política na porta”, disse Gunness. “Estamos absolutamente comprometidos com os direitos humanos e a questão da neutralidade. Nunca vi uma prova sequer que o dinheiro de ajuda foi subvertido”.
Mas é claro que isso não é toda a verdade. Na ACNUR, quem é pego apoiando terrorismo tem seu status de refugiado revogado. No caso da UNRWA, no entanto, não há controle algum. Não é de admirar que ouçamos frequentemente casos em que armas que são encontradas em instalações da UNRWA ou que, de lá, há lançamento de foguetes contra Israel.
Tem muita gente que não está interessada no fim da UNRWA. Todos os que trabalham na agência, claro. Mas, principalmente, países do bloco árabe que querem manter os palestinos na condição de deslocados e sem cidadania com objetivos políticos. O objetivo é pressionar Israel, pressionar o mundo a aceitar que 6 milhões de refugiados palestinos “voltem” para Israel, para onde seus bisavós moravam, acabando, na prática, com o caráter judaico de Israel, um país com menos de 10 milhões de pessoas (73% delas judeus).
Não há nenhum outro tipo de grupo de refugiados que peça e exija o mesmo: que “voltem” às casas de bisavós perseguidos ou deslocados. Imaginem se fosse assim. Eu poderia, então, exigir de volta a casa e a loja de estofados do meu bisavô – morto no Holocausto – em Westerburg, na Alemanha.
O que fazer, então? Antes de tudo, é importante dizer que a UNRWA é sim uma organização humanitária que não pode acabar de uma hora para outra. Ela faz um trabalho importante junto a palestinos que realmente são carentes e necessitados, principalmente na Faixa de Gaza. Durante a pandemia de Covid-19, os palestinos sob a UNRWA foram vacinados e tratados graças à agência. A UNRWA realmente produz estabilidade em muitos lugares.
Não se trata de terminar com essa ajuda tão importante e sim com a politização da agência. Alguns governos estudaram o assunto, como Canadá, EUA e Alemanha, e pensam em algumas soluções. Há quem afirme – e eu concordo com esses – que qualquer negociação sobre a criação de um Estado Palestino deve passar por uma redefinição do papel da ONU na região. Mas que, enquanto não houver uma negociação de paz séria ou horizonte político para a solução de dois Estados, nada mudará.
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