Daniela Kresch
TEL AVIV – O agricultor Hamid, pai de 9 filhos, estava indo trabalhar na manhã de sábado, 7 de outubro de 2023. Sua esposa dirigia o carro e iria buscá-lo no fim do dia. Mas, no caminho, seu carro foi crivado por balas por terroristas do grupo palestino Hamas, que cruzaram a fronteira entre a Faixa de Gaza e Israel para cometer um dos maiores atentados terroristas da história moderna.
A mulher de Hamid foi atingida por oito tiros e morreu em segundos. Ele sobreviveu para contar a história. Detalhe: Hamid nasceu em Rafah, no Sul da Faixa de Gaza. Mora em Israel há quase 30 anos. Mas é palestino. Sua mulher, que faleceu, era uma beduína-israelense, muçulmana.
Os terroristas do Hamas não se importaram com a identidade, religião, nacionalidade, idade e gênero das mais de 1.200 pessoas que mataram. Dos mortos, 287 tinham cidadania estrangeira ou dupla. Dos 239 sequestrados, 120 têm cidadania estrangeira ou dupla. Entre os israelenses, os mortos e sequestrados também são diversos. Há judeus, muçulmanos e cristãos.
O trauma coletivo que se abateu sobre todo o país está realmente mudando as relações internas dentro de Israel. Pode ser temporário (espero que não), mas os horrores do 7 de outubro e das semanas seguintes – a guerra, o alistamento de reservistas, os contínuos lançamentos de foguetes contra Israel, a paralisia na economia – estão chacoalhando a sociedade israelense. Um dos aspectos dessa mudança diz respeito aos árabes de Israel, a significativa minoria de 21% dos cidadãos do país.
Como foi bem noticiado por aqui (no artigo de 14 de novembro da minha colega Revital Poleg), 70% dos árabes de Israel se sentem identificados com o país no momento, um percentual recorde, segundo enquete do Instituto Viterbi, parte do Instituto de Democracia de Israel.
Entre os entrevistados estavam beduínos, como a esposa de Hamid. Os beduínos são árabes muçulmanos que vivem, em geral, no deserto do Neguev, no Sul de Israel. São cidadãos de Israel como quaisquer outros. Ao todo, são cerca de 200 mil pessoas, pouco mais de 2% da população do país. A comunidade sofreu pesadas perdas desde 7 de outubro, com membros assassinados e sequestrados.
Muitos beduínos servem no exército israelense, principalmente rastreadores nas unidades de rastreamento de elite, justamente para proteger a fronteira contra infiltrações.
Grande parte deles vivem em comunidades precárias que não são reconhecidas pelo Estado. No passado, costumavam vagar pelo deserto com seus rebanhos (são beduínos, afinal). Mas, atualmente, a maioria vive em comunidades fixas, muitas das quais assentadas sem permissão ou organização urbana prévia. Há tempos, pedem para serem reconhecidos formalmente, para receber infraestrutura básica. As negociações quanto a isso estão empacadas.
Quando a guerra começou, muitos deles acreditavam que o assunto não era com eles. Afinal, são árabes muçulmanos, como os palestinos de Gaza. Mas rapidamente entenderam que, para o Hamas, isso não importa. Seus vilarejos absorveram grande parte dos foguetes lançados pelo Hamas contra o Sul de Israel.
Numa das aldeias não reconhecidas, perto de Nevatim, caíram dois mísseis. Quatro crianças foram mortas lá, incluindo dois irmãos. Eles não tinham ideia de que poderiam ser alvos. Isso causou muita comoção e medo. Fora isso, há beduínos que também foram sequestrados. Há pelo menos sete beduínos reféns que foram levados para Gaza, entre eles um pai e três filhos de uma só família.
Em algumas das imagens, dá para ver como os terroristas os despiram, algemaram, carregaram em carros e simplesmente os levaram consigo, apesar de saberem de sua identidade. Houve outros casos, tanto em Sderot como perto de outros moshavim, onde moradores beduínos que estavam de passagem na estrada, foram baleados por motocicletas do Hamas.
O que leva os beduínos a se tornar alvos “fáceis” dos foguetes de Gaza é justamente a falta de infraestrutura de seus vilarejos. Muitos não têm eletricidade, então não estão ligados ao sistema de alertas antibomba que todas as cidades têm. E, claro, em suas tendas ou estruturas mais permanentes, não há quartos protegidos, como nos prédios modernos.
Eles nem contavam com bunkers coletivos, até porque nunca pensaram que seriam alvos – nem eles e nem as autoridades israelenses, que certamente negligenciaram a segurança dos beduínos. Só agora é que o exército está improvisando estruturas de concreto para que eles se protejam de foguetes e ensinando os beduínos a baixarem o aplicativo do exército que avisa em caso de foguetes.
Outra negligência terrível, que só agora está sendo resolvida: como muitos vivem em vilarejos não reconhecidos, o sistema antiaéreo Domo de Ferro não lança mísseis para interceptar foguetes do Hamas e da Jihad Islâmica que estão prestes a cair em um deles. Isso porque, afinal, é como se não houvesse cidade alguma lá.
Amal Abu Elkoum é uma cidadã israelense beduína que vive num desses vilarejos não reconhecidos. Em depoimento ao podcast “Ehad Beyom” (“Um por dia”), do canal 12 da TV israelense, ela disse: “O dia 7 de outubro foi o dia mais difícil da minha vida. Assim que soube do que estava acontecendo, a primeira coisa que fiz foi ir até minhas filhas, abraçá-las, fortalecê-las porque elas estavam com medo e eu, chocada”.
“Comecei a ouvir os foguetes e depois, ver pessoas que foram feridas da nossa família”, continua Amal. “Passamos a temer pelos nossos amigos, nossos filhos, pessoas, todos nós juntos: judeus e árabes. Eu soube de pessoas árabes e judias mortas. Pessoas sequestradas que conheço. Meus amigos de kibutzim na fronteira com Gaza. Vi a foto da minha amiga, Tamar Kedem, com a qual estudei este ano. De todas as direções vi o desastre”.
O trauma motivou Amal a agir. Ela já dirige a associação “Mulheres Beduínas por Si Mesmas” e atua em outras ONGs. No dia 8 de outubro, ela montou uma banca na Escola Tecnológica de Shaqib al-Salam (Seguev Shalom, em hebraico), uma cidade beduína perto de Beer Sheva, onde coordena ajuda e doações para famílias beduínas afetadas: “Postei um link para doações, mandei para todos os meus amigos. E vi a mobilização civil das pessoas, que vêm de todos os lugares do mundo e de Israel, mesmo com medo, sob os foguetes, para nos ajudar”.
“O que eu vi é algo que nunca vi na minha vida: a solidariedade do povo, porque não estou sozinha, estou aqui, com uma grande equipe de mulheres voluntárias da sociedade beduína, juntamente com a sociedade judaica, com voluntários de todos os tipos de lugares”, continua Amal. “Todos queremos que esta guerra acabe e que acabe imediatamente. Também sei que as pessoas em Gaza, os cidadãos de lá, estão pagando um preço muito elevado. Mas (os terroristas) não vão nos quebrar”.
Além das perdas físicas, os beduínos foram duramente atingidos pelo simples fato de o Hamas ter praticado o ataque terrorista em nome do Islã. Eles afirmam representar o Islã e, portanto, em nome do Islã, invadiram Israel, mataram todos os que estavam na frente, crianças, mulheres, e cometeram todas as atrocidades possíveis. Do ponto de vista dos beduínos e dos muçulmanos em geral, isso foi uma ofensa incrível.
“Essa é a nossa religião? Eu digo diante das câmeras: nossa religião não manda você matar pessoas, mulheres, não manda tocar nas crianças, nos idosos, não manda torturar e violar”, disse um líder beduíno ao canal 12.
O jornalista Yossi Mizrahi, entrevistado no podcast, afirmou ter ouvido muito dos beduínos e de outros árabes-israelenses a frase: “Eu sou israelense”.
“Eles enfatizam isso”, disse Mizrahi. “O que aconteceu agora, precisamente num dos piores momentos de Israel e dos judeus em geral, eles se sentem parte. Querem se distanciar das ações do Hamas e simpatizam com as vítimas israelenses, porque são parte dessas vítimas”.
É incrível como o atentado hediondo do Hamas e a guerra em curso é capaz de reconfigurar a sensação de nacionalismo dos israelenses, mesmo os não-judeus, que são 1 em cada 4 cidadãos. Dos judeus, ouve-se muito elogios a todos os não-judeus do país, que se mostram empáticos e unidos. Prova de que a tragédia atual é algo que atinge todo o país, todos os cidadãos de Israel.
Se esse sentimento de pertencimento irá mudar a sociedade a longo prazo, o tempo dirá. Eu sinceramente espero que essa seja uma das “limonadas” que sairão desses limões que abalaram e continuam abalando Israel.
Foto: MARK NEYMAN – GPO