Meu pai e a fronteira com a Faixa de Gaza

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Daniela Kresch

TEL AVIV – Em 1958, quando tinha 21 anos, meu pai fez uma viagem memorável a Israel, que tinha completado meros 10 anos de criação. Ficou hospedado no Kibutz Ein HaShloshá, na fronteira com a Faixa de Gaza, o qual nunca esqueceu. A viagem, do movimento juvenil Hashmonaim (da sinagoga ARI, no Rio), deixou uma impressão muito forte nele. Na foto da época, no kibutz, ele é o último à direita.

Meu pai nunca parou de falar de Ein HaShloshá até seu falecimento, em 2017. Comentava sobre a beleza do kibutz, do Sul de Israel. De como as pessoas no kibutz eram corajosas e idealistas. Quando eu era criança, ouvi inúmeras vezes sobre a história de bravura dos chalutzim (pioneiros) sionistas, que lutavam pela autodeterminação judaica, pelos ideais de criação de um país que fosse um porto-seguro para os judeus, que, poucos anos antes, tinham sofrido um genocídio em escala industrial.

Um dos filmes prediletos do meu pai era “Exodus” (de Otto Preminger), com Paul Newman no papel do herói sionista forte, corajoso e idealista que meu pai sonhara ser, um dia. Ein HaShloshá, para meu pai, era o palco desse nobre ideal.

Eu conheci Ein HaShloshá em 2014, quando fui fazer uma reportagem lá. Fui conhecer o maior túnel subterrâneo do Hamas descoberto, até então, na fronteira de Gaza com Israel. Com três quilômetros, ele começava na cidade palestina de Khan Younis e terminava dentro do solo israelense, dentro do kibutz. O túnel era uma construção de engenharia invejável. Tinha eletricidade, tinha sinalização. Imagino o dinheiro que o Hamas gastou para construí-lo em vez de ser investido em educação e saúde para os moradores da Faixa de Gaza.

(Foto: Daniela Kresch)

Para os israelenses, a descoberta desse túnel e outras dezenas deles era um pesadelo. Já na época, a infiltração de terroristas islâmicos através de túneis para cometer atos de terrorismo ou sequestros de civis e soldados em solo israelense já era um temor palpável. Naquele ano, em 17 de julho, 13 membros do Hamas saíram pelo buraco de um desses túneis antes de serem descobertos e mortos pelos soldados israelenses.

Os moradores da região, nervosos, temiam que o Hamas planejasse um assalto simultâneo durante o feriado judaico de Rosh Hashaná (Ano Novo) de 2014. O pior cenário, o mais tenebroso pesadelo, aconteceu nove anos depois, em Sucot de 2023.

O Kibutz Ein HaShlosha, que fica a menos de 4km da fronteira com a Faixa de Gaza, é bem próximo do Kibutz Re’im, onde estava acontecendo aquele festival de música no qual 260 jovens israelenses foram chacinados, do Kibutz Be’eri, onde 100 dos 400 moradores foram exterminados, e de outros vilarejos e kibutzim destruídos pelo odiento ataque terrorista do Hamas.

O kibutz tem ligação forte com a América Latina. Ein HaShloshá foi fundado em 1950 por um grupo de imigrantes latinoamericanos. Seu nome (Ein Hashloshá, ou “Poço dos Três”, em hebraico) é em referência a três combatentes judeus que morreram na Guerra da Independência, em 1948. Ele tinha cerca de 400 moradores até sábado passado, o infame 7 de outubro de 2023. Hoje, não sei quantos sobraram.

Nos seus primeiros anos, o Kibutz Ein Hashloshá enfrentou numerosos desafios, incluindo as condições desérticas muitas vezes duras e áridas da região do deserto do Neguev. Mas os fundadores partilhavam uma visão comum de criar uma comunidade autossustentável com agricultura cooperativa que abraçasse os princípios socialistas. A maioria tinha uma visão de esquerda, de paz com palestinos, de amor ao próximo.

Mas, nada se compara ao desafio atual, depois desse massacre e o sequestro de civis israelenses pelo Hamas. No momento em que escrevo estas linhas, não há nenhum habitante por lá. Foram todos evacuados pelo exército para locais um pouco mais seguros, em Israel. E depois dessa guerra? O que fazer? Voltar, reconstruir?

Os moradores dos kibutzim idealistas e pacifistas enfrentam, hoje, sua hora mais trágica. O trauma ficará para sempre.

Não sei o que acontecerá nos próximos dias, semanas, meses, nessa guerra entre Israel e Hamas. Muito será noticiado, estudado, escrito. Muita gente vai esquecer a chacina de civis israelenses ou relativizar o terrorismo palestino à luz da forte e poderosa retaliação israelense. Infelizmente, não tenho resposta alguma para solucionar esse conflito centenário e sangrento.

Só sei que, hoje, agradeço por meu pai não estar vivo para ver a tragédia de seu querido Ein HaShloshá.

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