Daniela Kresch
TEL AVIV – Muito se discute, em Israel, sobre os efeitos da reforma judicial que o atual governo Benjamin Netanyahu está promovendo. Alguns acreditam que Israel está seguindo passo a passo a cartilha que transformou em democracias iliberais países antes democráticos como Polônia e Hungria.
Outros, no entanto, creem que o caminho que Israel está trilhando não é o polonês ou o húngaro, e sim o do Irã e o da Turquia. Para esses, Israel não está apenas seguindo o trajeto de países que aboliram os pesos e contrapesos democráticos. O que está em jogo aqui é ainda pior: a criação de uma teocracia, na qual as leis de livros sagrados são as que mandam.
A coalizão atual do governo de Israel é de “direita total-total”, como eles mesmo dizem. Reúne seis partidos: Likud (32 cadeiras), Shas (11), Sionismo Religioso (7), Judaísmo da Torá (7), Força Judaica (6) e Noam (1). No total, são 64 das 120 cadeiras do Knesset. Dessa lista, o partido mais “à esquerda” é, por incrível que pareça, o Likud de Benjamin Netanyahu.
O Likud é “fichinha” perto dos partidos que Netanyahu decidiu incluir na coalizão. Os outros são ou ultra religiosos (os ultraortodoxos, ou “haredim”, Shas e Judaísmo da Torá) ou ultranacionalistas religiosos (Sionismo Religioso, Força Judaica e Noam).
Como se vê, o fator “religião” é uma constante neste governo. E é isso que leva muita gente a temer a transformação de Israel de uma democracia liberal secular para uma pseudo-democracia religiosa. Quer dizer: não apenas um país onde só o Poder Executivo (o líder) é quem manda, como Polônia e Hungria, sem a crucial intervenção ou contrapeso do Poder Judiciário.
Israel estaria caminhando para se tornar uma democracia iliberal com um molho a mais: a religião. Se tornaria uma “medinat alachá” – uma teocracia, onde a lei que rege a todos é a da Torá.
O partido Sionismo Religioso, do ministro do Tesouro, Bezalel Smotrich, não esconde que seu objetivo a longo prazo é criar um estado baseado na lei judaica. Ele é uma das principais lideranças de uma vertente da comunidade religiosa sionista apelidada de “hardalim”. O termo foi cunhado a partir da união das palavras “haredim” (ultraortodoxos) e “leumim” (nacionalistas).
Haredim e hardalim são diferentes. Os ultraortodoxos são menos ligados ao sionismo em termos de criação de um Estado moderno, acreditando que a “verdadeira” Israel só será estabelecida mesmo quando o Messias chegar. Eles são aqueles que se vestem com ternos pretos e usam “cachinhos” (peiot) atrás da orelha, moram em bairros como Meá Shearim, em Jerusalém, e cidades como Bnei Brak e Elad.
Já os hardalim são hiper sionistas: acreditam no Estado de Israel como porto-seguro para os judeus do mundo (mesmo preferindo judeus “de verdade”, religiosos, e não judeus “de mentira”, seculares). São ultranacionalistas: querem toda a Terra de Israel apenas para os judeus e são fortemente contrários a um Estado Palestino. Eles são a maioria dos colonos na Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Se vestem com roupas mais modernas, mas usam uma kipot e tzitziot bem visíveis.
Os haredim, por sua vez, se importam menos com a questão territorial. A “Terra de Israel”, para eles, é algo mais espiritual.
Algo mais que os difere: os hardalim são a favor, em geral, do alistamento militar e da participação integral na vida e na economia do país. Grande parte dos haredim, por sua vez, não quer fazer serviço militar (acredita que estudar Torá é mais importante) e nem aprender disciplinas “seculares” na escola, como matemática e inglês. Metade dos homens ultraortodoxos não trabalha.
Mas – e isso é crucial –, as duas vertentes têm algo fundamental em comum: a defesa de um regime baseado nas leis da Torá com uma interpretação bastante estreita do que seja isso. Uma “medinat alachá”. Já existem, em Israel, tribunais rabínicos. Eles querem ampliá-los e equipará-los aos tribunais civis. Isso seria legalizar normas e comportamentos religiosos descritos em livros sagrados antigos. Nada de “direitos humanos”, essa coisa moderna.
Talvez seja fácil pensar: “Não, isso nunca vai acontecer com Israel. O país tem maioria secular ou religiosa light. Nunca será uma ‘medinat halachᔑ. Aliás, o próprio primeiro-ministro disse isso com todas as letras nas inúmeras entrevistas que tem dado, nos últimos meses, a jornalistas estrangeiros.
Mas só o fato de ele ter que negar essa possibilidade acende uma luz vermelha. Aliás, ninguém podia imaginar, antes da revolução islâmica no Irã, em 1979, que isso fosse acontecer por lá, um país que era secular e moderno.
Também é importante recordar para onde Israel se dirige em termos demográficos. Nas últimas eleições, os dois partidos haredim e o hardalim receberam um total de 25% dos votos nacionais. No entanto, obtiveram 56% dos votos em Jerusalém, o que é um indicador importante e fiável de qual será a situação de Israel em meados do século 21.
“É mais razoável esperar uma continuação das tendências existentes”, escreveu no jornal Haaretz Eran Yashiv, professor de economia na Universidade de Tel Aviv e pesquisador no Centro de Macroeconomia da London School of Economics. “Há um perigo real de que, em última análise, um Irã judeu seja criado aqui – um estado teocrático com uma economia fraca cuja produtividade, os cidadãos contribuintes deixarão o país, silenciosamente, mas de forma constante”.
Nada denota mais esse possível futuro do que o status das mulheres, sempre as primeiras a serem afetadas em teocracias retrógradas, que seguem leis misóginas. Desde a criação deste governo, os danos causados às mulheres em Israel têm sido sentidos claramente, tanto em termos de legislação quanto nas decisões da coalizão, sem contar o clima público.
Após décadas de uma tendência de aumento na representação das mulheres no Knesset, o Parlamento em Jerusalém, o novo governo formado em dezembro de 2022 disse: “nada disso, política é coisa de homem”. Só 29 dos 120 parlamentares do Knesset são mulheres. Dos 32 atuais ministros, só seis são mulheres. A maioria das mulheres no governo recebeu pastas menos centrais. E muitas mulheres foram demitidas de cargos administrativos seniores.
A sub-representação das mulheres na política israelense não é novidade. Mas a tendência era de melhora. Agora, na atual coalizão, a maioria dos partidos – haredim principalmente – promove claramente a supremacia masculina e que não acredita em igualdade de gênero.
Tudo isso tem levado a iniciativas que ninguém havia pensado que Israel poderia vivenciar, como a segregação de gênero em espaços públicos (incluindo praias e parques nacionais), sem contar no transporte público (o que já acontece, de fato, em várias cidades ou bairros ultraortodoxos). Recentemente, o clima de segregação tem ficado cada vez mais visível. A um aumento notável no fenômeno de mulheres serem impedidas de embarcar em ônibus, por vezes devido ao fato de que são mulheres e noutros casos pelo “crime” de “roupa imodesta”.
A tendência atual leva a preocupação de que, num futuro bem próximo, mulheres não poderão cantar ou falar em eventos oficiais, algo que os ultraortodoxos já exigem em unidades religiosas do exército.
E o que tem a ver a reforma judicial com isso? A reforma é a ferramenta que esses partidos religiosos querem usar para transformar a democracia israelense no regime religioso iliberal que eles desejam. Com uma Suprema Corte enfraquecida, Israel pode seguir os passos não de Hungria e Polônia, mas sim do Irã.
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