Daniela Kresch
TEL AVIV – Israel passa por um momento turbulento. A não ser que você viva isolado no deserto, saberá que o atual governo Benjamin Netanyahu está tentando aprovar uma ampla reforma judicial desde que tomou posse, no finalzinho de dezembro de 2022. Na verdade, a reforma foi anunciada alguns dias depois, no começo de 2023, pelo ministro da Justiça, Yariv Levin, mentor desse projeto.
Desde então, Israel é um país em convulsão e dividido. Todas as pesquisas de opinião desde janeiro de 2023 apontam que algo em torno de 40% dos israelenses são totalmente contra a reforma de Levin e cerca de 25% são totalmente a favor.
Os outros 35% dizem ser a favor de uma reforma, mas que seja aprovada por um amplo consenso na sociedade. Esses se dividem entre os que concordam com a reforma de Levin, mas aceitam abrir mão de partes dela para evitar uma convulsão social ainda maior, e os que acreditam que o sistema judicial de Israel deveria ser mesmo repensado, mas de forma completamente diferente ao que propõe Levin.
Vamos usar uma metáfora infantil, mas que ajuda a compreender o que está acontecendo. Digamos que você diga a um grupo de banhistas que eles precisam urgentemente beber para “evitar desidratação”. Mas você não gosta da água local porque disseram que ela tem cloro acima do normal e decidiu que todos vão ter que beber, daqui em diante, refrigerante.
- Alguns diriam sim. Podem nem saber ingredientes e nunca pensaram em tomar refrigerante em vez de água, mas se você falou que é melhor, confiam em você.
- Alguns diriam não. Querem continuar a beber água local, mesmo com o cloro a mais. Diriam que refrigerante não ajuda a hidratar ninguém e, pior, contém muito açúcar. Vai piorar a saúde das pessoas.
- Alguns diriam que seria melhor debater o assunto.
- Parte dos que pedem o debate querem evitar que os anti- refrigerante fiquem muito chateados (quem sabe dá para diluir ou tomar refrigerante só dia sim, dia não?).
- Outros acham que é possível pensar em alguma solução melhor do que refrigerante para o problema do nível do cloro na água. Diminuir o cloro? Tomar suco?
A metáfora ilustra (de forma imperfeita, admito) as opções que vemos, hoje, na opinião pública. O que aconteceu, em janeiro, foi como a alegoria do refrigerante. O ministro da Justiça avisou aos israelenses, de supetão e sem aviso prévio, que a água do país tem cloro demais, ou melhor, que o sistema judicial de Israel é ruim. Ele decidiu que o sistema atual teria que ser substituído por outro, cujas bases ele anunciou, sem discussão alguma ou debate nacional. Na nossa metáfora, decidiu que todos deveriam beber refri de agora em diante.
Foi tudo uma surpresa. Os israelenses não pediram uma reforma judicial. Não havia um clamor popular por isso. Uma reforma (qualquer reforma) não era parte do debate público até o dia em que Yariv Levin divulgou seu plano como se fosse algo urgente. O assunto não foi tema de nenhuma das 5 eleições gerais que Israel teve entre 2019 e 2022. Uma reforma no judiciário não estava na plataforma de nenhum partido, incluindo o partido de Levin e do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o Likud.
Na nossa metáfora: os israelenses não estavam observando problemas demais com o cloro da água e nem estavam pedindo refrigerantes. Sim, seria possível melhorar a qualidade da água, mas isso não era prioridade e a solução apontada não era a imaginada.
Metáforas à parte, a questão da reforma judicial é séria. No momento em que ela foi anunciada, muitos israelenses ficaram chocados com a urgência das mudanças que eles nem sabiam serem tão “necessárias”. De repente, descobriram que o sistema judicial de Israel – a única democracia do Oriente Médio – era péssimo e que, para Yariv Levin, Israel vive uma “ditadora do Supremo” há 30 anos.
Todas as medidas de Levin têm o objetivo de conceder ao governo poderes ilimitados e acabar com toda supervisão e restrições do único contrapeso ao Poder Executivo que realmente funciona como contrapeso: o Supremo. Assim, não é de estranhar que a maior parte das propostas desta reforma diga respeito à única instituição capaz de coibir o poder do governo – o Supremo Tribunal Federal.
Na metáfora do refrigerante: é como se o governo fosse dono da fábrica de refrescos. A ideia seria fortalecer seus interesses sem que os nutricionistas do Ministério da Saúde (o Supremo, na metáfora), monitore os índices de açúcar das bebidas.
Para “consertar” o que Levin disse ser uma aberração, ele propôs:
1) Anular a “cláusula de razoabilidade” como consideração para os tribunais na revisão da legislação e decisões governamentais;
2) Alterar a composição da Comissão de Seleção Judicial;
3) Instituir uma cláusula de substituição que permitiria ao Knesset contornar as decisões da Suprema Corte com uma maioria simples de 61 membros;
4) Retirar o poder da Suprema Corte de derrubar leis básicas; e
5) Permitir que os ministros nomeiem seus próprios assessores jurídicos, em vez de dependerem dos assessores jurídicos ministeriais.
Dessas sugestões, a primeira já foi aprovada. A segunda deve ser votada assim que acabar o recesso da Knesset, em outubro. Netanyahu já avisou isso em entrevistas à imprensa estrangeira, mesmo tendo jurado que engavetaria o resto da reforma judicial diante de todos os alertas sobre as consequências do enfraquecimento da democracia de Israel que recebeu da cúpula econômica e militar do país, sem contar pressões do presidente dos EUA, Joe Biden, e das manifestações internas que já duram mais de 30 semanas.
Antes dos planos de Levin, havia sim uma discussão acadêmica interna sobre questões judiciais. Mas era algo acadêmico e teórico. Não havia discussão popular. É claro, hoje, que essa discussão popular é enviesada pela política. Quem é fã de Netanyahu diz “adorar” a reforma – a qual não entende muito bem nem quer entender. Quem é de oposição a este governo ultradireitista, ultranacionalista e ultrarreligioso certamente tende, a priori, a não apoiar reformas deste governo.
Mas quem tenta entender um pouco mais – mesmo sem ter estudado Direito – percebe que, se o sistema judicial de Israel precisa de melhorias, elas são outras. Não as de Levin.
Em um artigo do dia 10 de fevereiro deste ano, apenas um mês depois do anúncio da reforma judicial, a Prof. Suzie Navot, professora de Direito Constitucional e vice-presidente de Pesquisa do Instituto de Democracia de Israel, escreveu um artigo sobre que tipo de reforma judicial Israel deveria implementar, ao invés da de Yariv Levin.
Navot listou cinco ideias para atualizar o sistema judicial de Israel – sem destruir a democracia, acabar com os mecanismos de supervisão do governo ou prejudicar nossos direitos básicos. Uma reforma que beneficie os cidadãos, que seja realmente necessária para todos, não apenas para o governo.
1. Reduzir processos criminais e civis
Não é segredo que os tribunais estão sobrecarregados. Processos legais em Israel às vezes podem levar anos. As audiências não são contínuas e os casos muitas vezes são adiados por muitos meses. Em alguns casos, as partes têm que esperar meses e até anos por um veredito. A situação é particularmente grave quando se trata de casos criminais. Esta questão, que afeta todos os cidadãos que se relacionam com a justiça, exige uma reforma profunda, além da atribuição dos orçamentos necessários.
2. Estabelecer um Tribunal de apelações adicional
A Suprema Corte de Israel serve como tribunal de apelações para todos os casos julgados nos tribunais distritais, além de funcionar como o Supremo Tribunal de Justiça que ouve petições contra o governo. A estrutura desse sistema permaneceu inalterada desde a criação do Estado de Israel, apesar do grande aumento da população do país e do número de casos julgados. O fato de que uma parcela substancial dos recursos limitados da Suprema Corte é dedicada a ouvir recursos cíveis e criminais torna difícil para o tribunal se concentrar em questões constitucionais e outras questões substantivas. Uma camada judicial adicional deve ser estabelecida entre os tribunais distritais e o Supremo Tribunal: um tribunal de apelações, encarregado de ouvir os recursos dos processos dos tribunais distritais.
3. Alterar a Lei do Estado-Nação
A “Lei Básica: Israel como o Estado-Nação do Povo Judeu” é uma lei básica particularmente importante, mas sofre de várias omissões flagrantes. Não se baseia num princípio de igualdade; isto é, não há menção às minorias para as quais Israel também é o lar, nem há menção de Israel ser não apenas judeu, mas também democrático. Além disso, a lei não faz referência à Declaração de Independência – documento fundador de Israel. A lei, portanto, precisa de várias pequenas emendas para ocupar seu lugar como um documento baseado em valor compartilhado por todos os cidadãos de Israel.
4. Dividir o papel do Procurador-Geral
Numa perspectiva positiva e com toda a cautela necessária, deve ser explorada a possibilidade de repartição dos poderes do Procurador-Geral entre duas instituições distintas: o Procurador-Geral e o Procurador do Estado. Um aconselharia e defenderia o governo em casos contra ele e outro teria o poder de criticar e indiciar membros do governo por crimes e transgressões. Este seria um projeto de grande escala que requer mapeamento, planejamento e discussão aprofundada. Não é algo que se possa decidir de um momento para o outro ou sem pensar seriamente.
5. Concluir o processo de legislação constitucional
Se a definição das relações entre os ramos do governo está sobre a mesa, o que poderia ser mais apropriado do que concluir o processo constitucional de Israel? Deveríamos chegar a um consenso tão amplo quanto possível entre as facções do Knesset para completar nosso projeto de lei ou direitos e consagrá-los em leis básicas para evitar que esses direitos sejam negociados de acordo com os caprichos políticos de um ou outro campo. Os cidadãos de Israel merecem um processo amplo, compartilhado e consensual para escrever um dos capítulos mais importantes da constituição de Israel
Como Suzie Navot bem disse, o Judiciário de Israel pode melhorar, e muito. O sistema atual vem sendo refinado nos 75 anos de existência do país. Não é perfeito e deve continuar a ser refinado, isso é claro e ninguém nega. Mas as melhorias devem ser outras e não apenas as que beneficiam ou fortalecem o governo.
(Foto: Twitter/@NTarnopolsky)