Daniela Kresch
TEL AVIV – Eu só assisti a primeira temporada de “Fauda” inteiramente. As outras, assisti pedaços. Não porque achasse ruim. Pelo contrário. O seriado israelense é tão bom que me dá calafrios. É quase como um documentário da realidade entre israelenses e palestinos. Um exemplo de como a realidade imita a arte (e vice-versa) aconteceu nesta segunda-feira, 19 de junho, com mais uma batalha campal na cidade de Jenin – o epicentro do conflito na Cisjordânia.
Como tudo por aqui, os relatos seguem narrativas pré-determinadas. O que a imprensa israelense sabe é que oito soldados israelenses ficaram feridos e cinco palestinos morreram em confrontos entre palestinos armados e tropas israelenses em Jenin. Outros 100 palestinos ficaram feridos.
Os vídeos e o número de mortos só pioram a já difícil imagem do exército de Israel pelo mundo. Como para a imprensa internacional o lado que tem mais mortos é sempre a “vítima”, Israel é descrito sempre como o “algoz”, sem muito contexto ou profundidade.
Não que a imagem de Israel melhoraria aos olhos do mundo caso a situação fosse descrita com menos superficialidade. Mas, talvez, o maniqueísmo desapareceria. Não há só bonzinhos de um lado e mauzinhos do outro. A complexidade do conflito não deve ser vista com olhos moralistas. Nesse sentido, pelo que sei de “Fauda”, o seriado acerta em cheio.
No caso de segunda-feira, tudo começou quando soldados israelenses entraram em Jenin, bem cedo, para, segundo o exército, deter dois palestinos procurados. Alguns soldados estavam disfarçados como população local (os chamados “mistaaravim”, que se fazem passar por árabes), mas foram descobertos.
Aí o caos começou. A troca de tiros correu solta. Além de balas, os palestinos lançaram coquetéis molotov e outros explosivos contra os soldados. Um veículo israelense foi atingido por um desses explosivos e oito soldados e policiais de fronteira ficaram feridos.
Para evacuá-los, pela primeira vez em 20 anos, desde a Segunda Intifada (2000-2004), um helicóptero israelense do tipo Apache realizou ataques aéreos para afastar os palestinos do carro. O exército afirma que os ataques foram contra um campo onde não havia casas, com o objetivo de evitar que os palestinos chegassem até o veículo e sequestrassem os soldados.
Segundo os palestinos, cinco moradores de Jenin foram mortos e cerca de 100 ficaram feridos nos confrontos. Entre os mortos, pelo menos três foram identificados como membros do grupo terrorista Jihad Islâmica. A ala local da Jihad, conhecida como Batalhão Jenin, admitiu que membros do grupo detonaram explosivos perto de veículos do exército e atiraram contra o helicóptero.
Esse tipo de detenções de procurados tem acontecido com frequência há mais de um ano, desde a onda de ataques terroristas em Israel entre abril e maio de 2022. Dia após dia, noite após noite, os soldados entram nas cidades, aldeias e campos de refugiados palestinos em busca de suspeitos de terrorismo e fazendo prisões. Em janeiro, nove palestinos foram mortos em outra ação que desandou.
A maior dificuldade de Israel em explicar ações realizadas na Cisjordânia é que o objetivo é evitar atentados futuros. Como provar que, caso não agisse, haveria um atentado em Tel Aviv ou Jerusalém com dezenas de civis mortos? É difícil convencer alguém de algo que não aconteceu ainda. O exército também não tem como revelar suas fontes e métodos para chegar a nomes de suspeitos.
No caso dos palestinos, como o “pecado original” é a ocupação israelense, fica fácil explicar ao mundo que estão apenas se defendendo dos maldosos soldados israelenses – que não têm provas de que havia algum planejamento de atentado. E mesmo que houvesse, para muitos palestinos, atentados são vistos como ações heroicas contra ocupantes.
Nas duas narrativas há justificativas e certeza de razão.
Os israelenses estão certos de que entrar em vilarejos palestinos de madrugada e prender pessoas em suas casas – muitas vezes sob olhares traumatizados de seus filhos – é justificável para evitar ataques terroristas.
E a ocupação? É verdade que Israel ocupa militarmente a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, mas isso é coisa que os políticos têm que resolver. Não as forças de segurança, cujo objetivo é apenas evitar atentados.
Isso justifica até mesmo erros como o que aconteceu há uma semana, quando soldados israelenses mataram por engano uma criança palestina na Cisjordânia. O menino de 2 anos estava com o pai próximo ao local onde estariam dois atiradores palestinos que haviam atirado contra civis israelenses. O exército admitiu o erro e repreendeu um dos oficiais envolvidos. Grupos de direitos humanos afirmam que os militares israelenses fazem muito pouco para investigar e punir seus soldados em casos assim.
No caso dos palestinos, eles estão certos de que os judeus (é assim que eles chamam os israelenses) estão ocupando toda a Palestina histórica (incluindo Tel Aviv ou Haifa, que para eles também estão sob ocupação) e que tudo o que eles fazem é lutar contra isso. Atentados terroristas são meios legítimos nessa guerra. Alvejar civis (incluindo crianças) é justificável. Afinal, eles se tornariam soldados, no futuro.
Isso justifica o assassinato das irmãs Rina e Maia Dee, de 15 e 20 anos, e a mãe delas, Lucy, que estavam dentro de um carro e foram mortas a queima-roupa por atiradores palestinos em abril deste ano. O fato de que a família Dee mora no assentamento Efrat, na Cisjordânia, seria suficiente para assassinar Rina, Maia e Lucy. Eram colonas, então mereciam morrer.
Essas duas narrativas, esses dois pontos de vista sobre a História, não se encontram em ponto algum, são paralelas e contraditórias. No momento em que se entende que elas justificam as ações de cada lado (que age com “racionalidade” de acordo com sua narrativa), é possível começar a desfiar o novelo desse conflito.
Mal comparando (já peço desculpas por isso), é como colocar um lulista e um bolsonarista frente a frente. O que eles teriam em comum, além do fato de que ambos têm narrativas antagônicas sobre o passado, o presente e o futuro do Brasil? Eles estão certos de sua razão. Talvez só a “racionalidade” como atuam de acordo com seus pontos de vista e que os afasta ainda mais.
A solução para essa questão das narrativas é, na minha opinião, tentar encontrar pontos de encontro entre duas linhas paralelas. Impossível? Para um matemático clássico, sim. Mas para os físicos quânticos, talvez… A teoria quântica fornece descrições para muitos fenômenos previamente inexplicados. Quem sabe é possível aproximar narrativas históricas tão distintas?
Foto: Reprodução/Netflix