Daniela Kresch
TEL AVIV – Dezenas de pessoas foram a Tel Aviv no sábado (10 de junho), dois dias depois da Pride Parade da cidade, para protestar contra o assassinato de uma jovem de 18 anos assassinada por sua orientação sexual. Sarit Ahmed Shakur havia saído do armário há alguns anos, mas nunca foi aceita pela família, que vivia na cidade drusa de Kisra, na Galileia.
Ela foi morta provavelmente por um dos irmãos como parte do fenômeno de “assassinatos pela honra da família”, que cresce ano a ano na conservadora sociedade árabe de Israel, da qual os drusos (que não são muçulmanos) fazem parte. Ser gay, para muitas famílias, seria um pecado mortal, uma vergonha cuja punição é a morte. Segundo dados do Instituto Israelense de Pesquisa de Gênero e LGBT, 50% dos gays árabes-israelenses já enfrentaram violência e 81% não se assumiram.
No protesto pela morte de Sarit, os manifestantes gritavam: “Cadê a polícia?”. A moça entrou para as estatísticas do ano mais violento da História dos árabes-israelenses (21% da população do país – não confundir com os palestinos não israelenses, que vivem na Cisjordânia e em Gaza).
Mais além dos feminicídios pela “honra da família”, os árabes de Israel enfrentam uma onda de assassinatos sem precedentes. Uma onda que é acompanhada da sensação de que suas vidas valem menos do que a de seus conterrâneos da maioria judaica (74% da população).
Até o momento em que escrevo estas linhas, 102 árabes de Israel foram assassinados desde o começo de 2023 – quase três vezes mais do que no mesmo período do ano passado. Além de Sarit Ahmed, as vítimas mais recentes foram cinco jovens árabes israelenses, que foram mortos a tiros em uma cidade árabe no norte de Israel, na última quinta-feira.
Esses números são impressionantes e os representantes do setor árabe-israelense apelam para que o governo e a polícia façam algo para ajudá-los. Eles culpam os governos do país nas últimas duas décadas, afirmando que eles falharam em reprimir as organizações criminosas e ignoraram amplamente a violência.
Há anos, há mais violência entre a população árabe de Israel do que judia. Em 2018, por exemplo, 104 pessoas morreram por homicídio em Israel: 67 árabes e 37 judeus. Em 2020, essa diferença aumentou ainda mais. Dos 138 mortos naquele ano, 108 eram árabes e 30, judeus.
Na última década, houve iniciativas para combater esse fenômeno. Mas o governo que mais conseguiu foi o de Naftali Bennett-Yair Lapid, em 2021, que elaborou uma abordagem holística para resolver o problema. Sob a responsabilidade do então vice-ministro da segurança pública Yoav Segalovitz, o plano incluía medidas destinadas a desmantelar o crime organizado, reprimir o contrabando de armas, fortalecer a governança no setor árabe e aumentar a cooperação com as autoridades árabes locais.
Era um plano de longo prazo que levaria tempo para ser implementado, mas até o final de 2022, as taxas de homicídios no setor árabe caíram cerca de 13%.
Essa tendência foi interrompida em janeiro com o começo do atual governo de extrema-direita. A primeira coisa que fez o novo ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, conhecido pelo seu racismo e postura antiárabe, foi acabar com o plano de Segalovitz.
Diante dessa situação calamitosa, aumentam as vozes que pedem a demissão de Ben-Gvir, que não parece interessado em lidar com a situação e é claramente tido como racista pela minoria árabe. “Em vez de passear no Monte do Templo ou se intrometer se os produtos de panificação são servidos nas prisões, Ben-Gvir deveria lidar com essa questão e pegar o touro pelos chifres: reunir-se com especialistas em segurança, especialistas em polícia, criminologistas e líderes árabes e concentrar todos os seus esforços em conter a violência”, escreveu o jornal Jerusalem Post, em editorial. “Este é o teste de Ben-Gvir. Se ele não conseguir, deve renunciar – ou ser demitido”.
Ben-Gvir, aliás, pede a intervenção do Shin Bet (Agência de Segurança de Israel) na questão. Se a polícia não dá conta, por que não envolver o Shin Bet no policiamento da violência criminosa árabe-israelense interna? Há quem, no entanto, seja contra isso. Além de ter recursos humanos, tecnológicos e orçamentários limitados, há uma questão de foco.
O Shin Bet lida com contraterrorismo e não com assuntos de violência doméstica. Em 2020, o Shin Bet já reclamou de ter sido mobilizado para rastrear não-vacinados no meio da epidemia de Covid-19. Em 2021, a agência também foi mobilizada para questões internas: a onda de tumultos em várias cidades israelenses mistas entre cidadãos judeus e árabes.
Mas quais são os fatores que levam a essa enxurrada de assassinatos? Dá para escrever um livro, mas cito alguns pontos. Qualquer semelhança com alguns extratos sociais em países como Brasil e Estados Unidos não é mera coincidência.
1) Falta de infraestrutura e serviços sociais nas cidades e bairros da minoria árabe de Israel. As comunidades árabes sofrem com um nível insuficiente de serviços de segurança interna, além de lacunas significativas em infraestrutura e acesso a serviços sociais. Nestas condições, há mais pobreza e desemprego, ociosidade e menos perspectiva para os jovens. Sabemos que, onde falta o poder público, aparecem poderes paralelos: crime organizado, clãs e famílias poderosas e etc. Isso transforma esses locais num terreno fértil para o crime e a violência.
2) Falta de confiança dos árabes nas autoridades, fruto de uma sensação de que o Estado não investe ou se importa com eles. Principalmente quando se trata da polícia. Isso leva a um paradoxo. Há realmente “sub policiamento” (deficiência na proteção dos cidadãos). Mas, ao mesmo tempo, há um “excesso de policiamento” (relacionado à tentativa de ações contra o crime organizado). Quer dizer: tem polícia de menos para proteger os cidadãos e polícia demais circulando com armas para tentar prender manda chuvas de máfias locais. Quanto menos confiança nas autoridades, mais os cidadãos árabes acreditam que se armar é a solução. Que fazem “justiça com as próprias mãos” é a solução, até porque a polícia não consegue decifrar nem 25% dos crimes cometidos e levar assassinos à justiça.
3) Organizações criminosas. No início dos anos 2000, Israel fez um esforço para lidar com organizações criminosas na sociedade judaica por meio da atividade policial em cooperação com outras agências de fiscalização. Ótimo. Mas uma consequência inesperada foi que a atividade criminosa se deslocou para as comunidades árabes, onde a fiscalização é menos eficaz. Essas organizações criminosas árabes ganharam força e capital com comércio de armas, tráfico de drogas e agiotagem. Não ajuda o fato de que há uma abundância de armas ilegais em Israel: muitas delas roubadas do exército.
4) A situação dos jovens árabes de Israel. Eles vivem entre a tradição de uma sociedade conservadora e a modernidade da Startup Nation. Por um lado, a geração mais jovem tem ambições pessoais e se sente atraída pela sociedade judaico-ocidental. Por outro, sentem uma conexão com a família e os valores tradicionais. Na falta de esperança de sucesso pessoal, integração no mercado de trabalho e na sociedade, alguns jovens aproveitam qualquer oportunidade de ganhar dinheiro, mesmo que isso os leve à criminalidade.
Os fatores acima não deixam dúvida: a solução deve ser a cooperação entre as autoridades nacionais e as lideranças árabes locais. Algo que o ex-vice-ministro da segurança pública Yoav Segalovitz estava começando a fazer, em 2021, com um plano de longo-prazo que já estava dando frutos. Para isso, é preciso que haja, em Israel, um governo que realmente se importe com o bem-estar da minoria árabe, que ame os cidadãos dessa minoria como ama os cidadãos da maioria judaica. Não acho que esse governo atual seja capaz disso.
(foto: reprodução)