Israel e o dia da marmota infinito do conflito com Gaza

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Daniela Kresch

TEL AVIV – Me sinto no Dia da Marmota toda vez que estoura um conflito entre Israel e Gaza. Tudo parece se repetir, das programações especiais nas TVs e rádio às entrevistas com vítimas, políticos, oficiais do exército, especialistas e analistas. De uma hora para a outra, os israelenses entram numa espécie de transe coletivo e reagem quase que automaticamente. Eles entram em “modo guerra” e suas reações são repetitivas e inconscientes.

Entendo que se trata de uma espécie de defesa emocional, como crianças que precisam escutar a mesma história todas as noites ou segurar um objeto conhecido. A psicologia de guerra dos israelenses os faz sentir um pouco mais seguros. Uma reportagem recente sobre soldados com pós-trauma resumiu bem. Um dos soldados disse que, durante esses conflitos, ele se sente “normal”. Isso porque todos se comportam como traumatizados, assim como ele.

Desde 2008, Israel e Gaza já se enfrentaram dezenas de vezes. Alguns desses conflitos  ganharam nome como “Chumbo Fundido” (2008), “Pilar de Defesa” (2012), “Margem Protetora” (2014), “Guardião das Muralhas” (2021) e “Alvorecer” (2022). Em 09 de maio de 2023, estourou mais um: “Escudo e flecha” – que terminou com mais um frágil cessar fogo cinco dias depois, neste domingo, 14 de maio. Pode-se dizer que, em média, há algo em torno de um conflito maior por ano há 15 anos com Gaza – sem contar as escaramuças entre esses confrontos, que são quase diárias.

Como vivo em Israel há 20 anos, eu estava aqui em quase todos eles. Por isso, acredito que só estando aqui e falando hebraico é que se consegue entender o que se passa na cabeça dos israelenses toda vez que começam a voar mísseis e foguetes sobre suas cabeças, a soar sirenes e as pessoas precisarem agarrar seus filhos e correr em direção ao abrigo antibomba mais próximo.

Assim que as autoridades avisam que começou uma operação – e dão nome a ela –, a mídia se engaja, começam as transmissões ao vivo quase 24 horas por dia, os repórteres se espalham pelos “locais usuais” e entrevistam as “pessoas usuais” (o mesmo acontece em coberturas emergenciais de atentados terroristas). O espectadores já sabem que cada canal de TV e de rádio vai entrevistar mais ou menos os mesmos personagens: os prefeitos e os moradores de Sderot e outras cidades atingidas, porta-vozes do exército, paramédicos, vítimas, transeuntes.

As reportagens também são sempre as mesmas: 1) Não há suficientes refúgios antibomba para todos; 2) Os comerciantes reclamam de prejuízos; 3) Pessoas nervosas nas ruas; 4) Quantas pessoas estão no hospital, etc. Quem sabe como essas coberturas funcionam, entende que, assim que algo urgente acontece, já está tudo mais ou menos organizado. É como a boa e velha cobertura de carnaval ou de réveillon, no Brasil. O problema é que é tudo aqui é feito em meio a esse estado esquisito de transe.

As mensagens de figuras públicas também são sempre as mesmas. E autoridades políticas e militares prometendo reagir duramente – em reação aos apelos populares. Querem, obviamente, algum lucro político. Não é à toa que, segundo pesquisa do canal 12 da TV local, 63% dos israelenses acharam que a liderança de Benjamin Netanyahu foi boa durante o conflito e 74% gostaram de como o ministro da Defesa, Yoav Gallant, se comportou.

Aliás, nessas horas, direita e esquerda entram numa espécie de trégua robótica, todos em prol das forças armadas e contra os terroristas palestinos. Ai de algum político que ouse destoar do coro, sob a ameaça de perder eleitores.

Em geral, os israelenses têm uma tendência de buscar força e heroísmo nas notícias que jorram da mídia. Se consolar com um ufanismo exacerbado sobre a moralidade do exército israelense (na qual eu acredito, mesmo que não cegamente) – de como ele faz de tudo para não alvejar civis palestinos em seus ataques cirúrgicos a quartéis-general dos grupos terroristas.

Não me entendam mal: ninguém fica feliz com a morte de civis do lado palestino, até porque a mídia local raramente mostra imagens de mortos e feridos palestinos. A meu ver, os jornais e TVs acham que vão desrespeitar as vítimas daqui caso mostrem as vítimas de lá.

Novamente: é preciso entendem o pensamento de quem foi atacado por milhares de foguetes. Realmente acho demais pedir para que, no momento do conflito, os israelenses demonstrem empatia demais por quem os ataca. Aliás, o mesmo acontece do outro lado. Não há empatia com os israelenses entre os palestinos. Muito pelo contrário. Há palestinos que celebram mortos de civis israelenses.

Exemplo: Jornalistas desavisados teimam em perguntar a vítimas nervosas e tensas como elas acham que o alto escalão político e militar deveria lidar com Gaza. Como se populares – principalmente os que acabaram de ser atacados por mísseis – tivessem algum tipo de know-how sobre estratégia militar. As respostas são sempre terrivelmente duras. “O que Israel deveria fazer em relação a Gaza”, perguntou um repórter a uma moça de 20 anos em Ashdod. “Tinha que destruir Gaza toda”, a moça respondeu. Na verdade, ela usou a palavra “aplanar”. O repórter quis saber o que ela queria dizer com isso, mas eu desliguei o rádio para manter minha sanidade mental.

Dito tudo isso, fica mais do que claro que uma discussão mais profunda sobre a política israelense em relação aos palestinos inexiste durante a cobertura no auge dos ataques, sirenes, estilhaços, mortos e feridos, crianças em bunkers e tudo mais.

Se alguém tenta ser um pouco mais profundo em análises mais amplas, acaba tendo poucas oportunidades. Em todos os programas ao vivo nas TVs – sempre com painéis de especialistas, analistas, jornalistas, políticos, ativistas, etc – os apresentadores se impacientam e tentam fazer com que eles reduzam seus comentários mais complexos. A meu ver, acham que perderão espectadores se a discussão se aprofundar demais e não ficar apenas na superficialidade do “estamos sendo atacados, somos vítimas”.

Mesmo assim, há vozes que tentam quebrar esse transe nacional. A veterana comentarista militar Carmela Menashé deixou claro, no canal Kan 11: “Nenhuma ação militar irá mudar a situação em Gaza”. Mas quem tenta ser mais fundo é certamente taxado de esquerdista, como o ex-ministro Yair Golan, do Meretz, que disse que “Israel já matou 4 mil palestinos e prendeu outros milhares nos últimos 20 anos e isso não mudou nada”.

Quem tenta explicar o mindset dos terroristas palestinos também tem menos vez, como se os entender fosse “humanizá-los” demais. O famoso repórter Ohad Hemo, do Canal 12, tentou dizer que eles têm certeza de que Israel é algo temporário, e que não pensam com a nossa lógica, que são brainwashed. Que não adianta matar um monte deles porque outros vão surgir. “Não é e nunca será zbang e acabou”, disse Hemo.

O problema maior é que, quando as rodadas de ataques mútuos terminam, os israelenses voltam para suas vidas de uma hora para outra e não querem pensar mais no que passou. Se concentram em outros problemas do país. Então, se não há debate mais profundo sobre a política israelenses em relação a Gaza durante os conflitos, nada muda quando os foguetes e ataques acabam.

E o ciclo se repete com a chegada – inevitável – de novos confrontos. Tudo se repete como no Dia da Marmota.

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