Por David Diesendruck, diretor do Instituto Brasil-Israel
Publicado originalmente no jornal O Globo em 25 de abril de 2023
“O Estado de Israel se mostrará não pela riqueza material, não pelo poderio militar ou conquista técnica, mas por seu caráter moral e valores humanos”, disse David Ben Gurion, primeiro premiê de Israel.
Ao celebrar 75 anos de independência, o Estado de Israel vive um momento crítico dessa curta existência. As manchetes não falam majoritariamente de guerra, atentados em ônibus, revolta nos territórios ocupados ou boicotes – ameaças externas que opaís sempre enfrentou com resiliência notável.
As notícias de hoje estampam milhares de bandeiras em manifestações contra a reforma judicial, proposta pela atual coalizão governamental, eleita e liderada por Benjamim Netanyahu. O noticiário destaca a tentativa da sociedade civil de defender uma democracia ameaçada.
O país não tem uma constituição e no regime parlamentarista o poder executivo e legislativo são controlados pelo partido governista. Sem um judiciário independente não haveria osistema de freios e contrapesos, necessário para uma democracia liberal. Tampouco haveria um Supremo empoderado o suficientepara proteger minorias.
Pela proposta de Netanyahu, uma maioria simples no parlamento poderia determinar a anexação da Cisjordânia ou a mudança na Lei do Retorno, que define a ancestralidade judaica, conferindo o direito à cidadania israelense. Essas seriam mudanças tectônicas na relação entre seculares e ortodoxos,palestinos e com a diáspora judaica.
O país está fragmentado, dividido e polarizado.
Israel vive uma celebração de aniversário na qual, talvez, pela primeira vez a maior ameaça a sua existência seja interna, não externa.
Contexto histórico
O Estado nasceu pelas mãos de uma população de origem europeia com ideais socialistas e seculares. A imigração dos judeus dos países árabes, que ocorreria em seguida, foi recebida com discriminação pela geração dos fundadores. Estes israelenses de origem árabe, até hoje, sentem-se diminuídospelos judeus de origem europeia.
Ao mesmo tempo, o regime parlamentarista permitiu que a minoria ortodoxa obtivesse privilégios que muito incomodam a maioria secular. Orçamentos públicos são direcionados para seminários ortodoxos, onde os alunos não recebem formação profissional e são isentos do exército, obrigatório a todos os demais judeus.
Em outras situações de ascensão de governos populistas, sejam de esquerda ou direita, já assistimos à manipulação de ressentimentos históricos e estruturais.
Bibi, como é chamado popularmente Netanyahu, há tempos se utiliza destes ressentimentos com maestria. Assim, fortalece preconceitos e cria o medo entre israelenses, árabes-israelenses epalestinos, dividindo o país.
Assistimos hoje a uma explosão destas emoções e frustrações como jamais vimos na história do país. De um lado, a população oriunda do Oriente Médio, mais conservadora, tradicional e os ultraortodoxos; do outro, os europeus mais liberais e seculares.
A primeira, mais voltada às humilhações do passado; a segunda,angustiada e ansiosa sobre o futuro de Israel. Fortes emoções se confrontam.
Felizmente, por enquanto, as manifestações contra a reforma jurídica têm sido pacíficas, com enorme paixão, mas sem nenhuma violência. A bandeira nacional do país foi resgatada é vem sendo utilizada pelos manifestantes como símbolo de sua luta pela democracia, de expressão de amor ao país.
Entretanto, após a pausa da Páscoa o parlamento retorna do recesso, e nenhum acordo entre coalizão e oposição foi celebrado. O governo mobiliza simpatizantes a saírem às ruas. Teremos dois grupos se manifestando, ambos convictos de suas motivações. A violência é uma possibilidade real.
A esperança é de que esta convulsão social permaneça pacífica e seja necessária para uma reparação e reconhecimento de humilhações passadas e da necessidade do diálogo para que o país chegue aos 100 anos refletindo os ideais propostos por sua Declaração de Independência e explicitados nas palavras de BenGurion.
A complexidade e urgência de uma solução podem ser o gatilho para o desenvolvimento de algo inédito nas relações entre diferentes segmentos de uma sociedade civil. Nada mais apropriado para um país reconhecido por suas disrupçõescientificas e tecnológicas do que trazer um novo modelo de acordo social que sirva de inspiração para o mundo.