Daniela Kresch
TEL AVIV – Não há muitas coisas que são tabu em Israel. Os israelenses criticam em público quase tudo, são céticos, fazem perguntas. Mas há uma exceção: o exército. Em geral, as críticas ao exército são limitadas e com luvas de pelica. As Forças de Defesa de Israel ainda são vistas como o “exército do povo” e as pessoas evitam incorporar qualquer questão política a uma instituição na qual a maior parte dos jovens israelenses passa anos de suas vidas. Um exército é quase a base da sociedade israelense (não confundir com as forças armadas do Brasil), e é visto como responsável pela segurança e a própria existência de Israel nos últimos 75 anos.
Mas algo mudou, agora. Grupos de combatentes e reservistas estão dizendo abertamente, em declarações, abaixo-assinados e cartas públicas, que se recusam a se apresentar para o serviço militar reservista (voluntário) por causa da polêmica reforma jurídica que o governo Netanyahu está tentando aprovar para enfraquecer a Suprema Corte e a própria democracia do país.
O podcast “Ehad BeYom” (“Um por dia”) do Canal 12, entrevistou três reservistas, todos de 40 e 50 anos de idades, patriotas, casados e com filhos, que consideram o exército como uma dos instituições mais importantes do país – talvez a mais importante. Um deles já avisou que não vai mais se voluntariar para os exercícios militares anuais que ele participa como reservista. O segundo está prestes a decidir a mesma coisa, mas ainda hesita. E o terceiro acredita que é preciso que os reservistas continuem a servir, independentemente das reforma jurídica.
Abaixo, o que cada um desses israelenses diz. Trata-se de um momento sem igual na sociedade israelense. O dilema que esses reservistas enfrentam é profundo e é um sinal de quão divididos estão os israelenses. “Divididos” talvez não seja a melhor palavra, porque a maioria dos israelenses é contra a reforma jurídica e isso tem se refletido há mais de dois meses em protestos quase diários nas ruas contra Netanyahu e seus asseclas. A palavra “divididos” diz respeito ao dilema interno que muitos desses reservistas, que deram anos de sua vida ao exército e a Israel, estão enfrentando.
Reservista n° 1: Shraga, que, depois de 30 anos como reservista, avisou que não vai mais se voluntariar.
“De acordo com os meus valores e o que eu acredito, não acho que colonos israelenses têm direito de morar na Judeia e na Samária ou que era certo que vivessem em Gaza. Mas nunca pensei duas vezes em acatar ordens de meus comandantes. Democracia é assim: quem venceu eleições democráticas pode implementar o que acredita e eu nunca me recusei a cumprir ordens. Enquanto estávamos dentro dos limites de um país judeu e democrático, eu servia. Colegas meus, no passado, se recusaram por motivos ideológicos, mas eu nunca achei que eles estavam certos, apesar de respeitá-los. Mas, hoje, estamos em outro lugar. Não é nada parecido com o que aconteceu antes.
“Não preciso ser um especialista em direito para entender que essa reforma jurídica, na melhor das hipóteses, vai nos transformar em uma democracia apenas formal. Eu, como democrata, estava pronto para servir no exército e fazer o que fosse necessário, mas eles mudaram as regras do jogo e eu não jogo esse jogo. Então, anunciei que, diante do fato de o país estar caminhando para uma ditadura, eu não vou mais (participar de exercícios da reserva). Para mim, no momento em que as duas primeiras leis da reforma foram aprovadas em primeira leitura no Knesset, a reforma já está em andamento. Então assinei um formulário de cancelamento voluntário.
“Sim, é difícil para mim. Se algo (uma guerra) acontecer, então com certeza meu estômago vai revirar… Se houver uma guerra com o Hezbollah, admito que pensarei duas vezes. Mas vamos ver como as coisas progridem. No que me diz respeito, e isso me machuca. Estou quebrado emocionalmente”.
Reservista n° 2: Amir, que é contra a reforma jurídica mas considera que insubordinação ou desistência de reservistas é errado.
“Eu realmente não apoio (a reforma jurídica) e participo regularmente de manifestações contra ela. Acho que o sistema jurídico de Israel precisa ser reformado, mas não dessa forma e com essa rapidez. Acho um erro grave o que estão fazendo e isso vai levar o país a uma situação muito ruim. É tudo muito perturbador para mim, muito.”
“Mas, enquanto a reforma não entrar em vigor, faço uma separação (entre exército e política). No final das contas, nós protegemos o país contra inimigos estrangeiros. Eu sinto que precisamos continuar protegendo o país de tais inimigos. Ainda não sinto que o Estado já violou o contrato de democracia, ainda não sinto que o Estado me deu uma ordem que eu não possa cumprir.
“Ainda não podemos abrir mão desse direito de defender o país, porque assim que isso acontecer, este país entrará em colapso, Os inimigos estão apenas esperando o momento de isso acontecer. O Estado ainda não violou o contrato, só houve a primeira leitura das duas primeiras leis de toda uma cadeia legislativa da reforma jurídica, que eu espero que não seja colocada em prática. Acho que ainda não estamos em condições de tomar essa decisão, apesar do rumo que o país parece tomar”.
“No dia em que a política entrar no exército, será o começo do fim deste país incrível que criamos aqui, porque se chegarmos a uma situação em que o exército mude, estaremos em uma situação muito, muito, muito difícil. Uma situação que, a meu ver, não terá volta. Mas sou otimista de que não chegaremos lá”.
Reservista n° 3: Nissim, que apoia a reforma jurídica e é veementemente contra e insubordinação ou desistência de reservistas.
“Para mim, o exército é a melhor instituição que existe neste país. Aprendi muitos valores. Não podemos destruir isso. Eu era um soldado regular durante a Retirada de Gaza e claro que eu participei de protestos contra a retirada. Mas fiz o que era necessário. Não me insubordinei.
“A meu ver, o Estado de Israel hoje não é democrático e a reforma é necessária. É o que eu penso e podemos discutir sobre isso. Mas isso não é o assunto. Apesar de eu pensar que Israel hoje não é democrático, eu fui um soldado da ativa por cinco anos e sou reservista há 14. Então, espero que aqueles que pensam que hoje somos uma democracia e depois da reforma não seremos mais, continuem servindo. Porque você não está servindo a um regime ou governo específico. Você não serve por causa de um primeiro-ministro, de um governo, da Suprema Corte ou do Knesset. Você serve para proteger os cidadãos. O inimigo não se importa se quem está no comando, no final das contas, é o Supremo ou o primeiro-ministro.
“Não estou aqui para defender um regime em particular. Estou aqui para proteger o meu vizinho, para proteger a minha filha e o meu filho. Mais do que isso, estou aqui para proteger todos os residentes do Estado de Israel. Não só os judeus. Todos. Você não está protegendo o Bibi. Está me protegendo. Quando agora você se recusa a embarcar num avião ou a realizar outra ação, não é o Bibi que você está punindo. Você está me punindo”.
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Os três reservistas acima representam a realidade de Israel, neste começo de 2023, enquanto o governo mais direitista, extremista, ultranacionalista e ultraortodoxo do país tentar aprovar, quase à força, uma reforma jurídica que pode mudar fundamentalmente o ethos de Israel como um país judeu e democrático. Esse governo conseguiu dividir a população, levar reservistas a enfrentar dilemas que nunca enfrentaram antes em tão larga escala. É um momento de tensão e de reação da sociedade civil contra o enfraquecimento da democracia. Só o tempo dirá se a democracia israelense vai sobreviver.