Daniela Kresch
TEL AVIV – Em Israel, o vinho se transforma em vinagre em questão de segundos. Na noite de sexta-feira, 27 de janeiro, ao final do Dia Internacional do Holocausto, os noticiários se preparavam para discutir a ameaça antidemocrática do atual governo Benjamin Netanyahu quando uma frase mudou tudo. “Estamos recebendo a informação de que há feridos em frente a uma sinagoga em Jerusalém”, interrompeu o âncora do Canal 12 em meio a um monólogo de um dos entrevistados no painel de discussão típico das noites de sexta.
No final das contas, ficaria claro que sete civis israelenses haviam sido mortos a tiros por um morador árabe de Jerusalém Oriental (podemos classificá-lo como palestino, certamente ele se identificava assim). Entre os mortos, um menino de 14 anos, um casal que ajudava outros feridos e uma cuidadora ucraniana.
Imediatamente, tudo mudou no noticiário e tudo mudou em Israel. Nos três principais canais de TV do país, o conhecido protocolo de emergência entrou em vigor: repórteres pareciam ter se teletransportado para o local do atentado, já entrevistando paramédicos, oficiais de segurança e testemunhas. A correria era enorme para revelar quem eram as vítimas – e quem era o algoz. Na ânsia por um furo de reportagem, um dos canais chegou a divulgar a foto de um homem que não tinha nada a ver com a história.
Mais além da correria jornalística, o atentado mudou o clima em Israel. Ainda mais quando, na manhã de sábado, um menino de apenas 13 anos, também árabe morador de Jerusalém, atirou com um revólver contra um grupo de judeus na Cidade de Davi (o bairro de Silwan), do lado da Cidade Velha de Jerusalém. Felizmente, ninguém morreu – nem as vítimas e nem o atirador. Mas a tensão aumentou ainda mais.
Por que eu digo que tudo mudou em Israel? Porque, se antes dos ataques só se falava da reforma jurídica de Netanyahu, que pode acabar com a democracia de Israel, de repente o assunto mudou. Voltou a ser “segurança nacional”, assunto que cai como uma luva para o primeiro-ministro e seus aliados ultranacionalistas. Eis um tema que eles adoram: como Israel precisa agir com mãos de ferro contra seus inimigos. De repente, esse “mimimi” de democracia e de Suprema Corte forte se torna menos importante do que armar as pessoas para atirar nos terroristas (sugestão do extremista ministro de Segurança Interna, Itamar Ben Gvir, encampada por Netanyahu).
Nada poderia ser melhor para Netanyahu neste momento. Vejam, não digo aqui que o veterano premiê ficou feliz com a morte de sete israelenses inocentes. Claro que não. Mas não há dúvidas que o conflito com os palestinos e com o Irã são temas que ele domina e que movimentam seus eleitores. Num momento como esse, muitos israelenses pensam que isso é muito mais importante do que o caráter democrático do país. Eles pensam algo assim: “Israel precisa se defender a todo custo de terroristas e, para isso, precisa agir com mão de ferro, sem interferências dos ‘juízes ativistas de esquerda’ do Supremo”.
Não há dúvidas de que desviar o foco do debate nacional para o constante – e justificado – temor dos israelenses de serem mortos por terroristas palestinos é do interesse de Netanyahu. Não é à toa que o número de manifestantes em Tel Aviv contra a reforma jurídica e outros absurdos deste governo diminuiu quase pela metade. No dia 21 de janeiro, 100 mil israelenses saíram às ruas em Tel Aviv para tentar pressionar esse governo a desistir de enfraquecer o Poder Judiciário, de fechar o canal de notícias público, de segregar parques nacionais por gênero, etc. Em 28 de janeiro, um dia depois do atentado diante da sinagoga, foram “apenas” 57 mil.
O luto e o respeito aos mortos são fatores importantes para a queda no número de manifestantes (e uma queda ainda maior na cobertura jornalística da manifestação). Mas certamente há gente que deixou de ir por achar que “este não é momento” de protestar. Talvez seja melhor deixar o Netanyahu e seus ministros de extrema-direita agir livremente para “salvar nossas vidas”. Desviar o foco de qualquer coisa para o conhecido sentimento israelense de urgência com base numa constante sensação de insegurança é interesse deste governo.
Infelizmente, a realidade do conflito com os palestinos – derivado de um século ou mais de embates religiosos, ideológicos e nacionalistas – volta a bater à porta, fazendo um barulho que pode ofuscar todas as outras realidade de Israel. Principalmente a realidade de um governo ultradireitista e ultraortodoxo que encara a democracia como valor descartável.
Mais do que me incomodar com a cobertura da mídia internacional às mortes de civis judeus em frente a uma sinagoga (quase justificando o atentado terrorista como se fosse uma “resposta natural e justa” a incursões de Israel na Cisjordânia e quase sem enfatizar que o atirador era um terrorista palestino), o meu temor é de um enfraquecimento das manifestações pró-democracia em Israel.
É importante falar de terrorismo e do conflito, chorar pelas vítimas inocentes desse conflito, dos dois lados. Mas é importante não perder – paralelamente – o foco no maior desafio do Estado de Israel neste começo de 2023: a luta pela democracia e o direito de cidadania de todos os habitantes do país, não só de quem está no poder.