Um judeu nunca é só um judeu

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Difundiu-se no Brasil a ideia de que judeus apoiaram o candidato e seguem apoiando o presidente Jair Bolsonaro. Este, por sua vez, retribuiria atendendo interesses dessa comunidade, quando não operando em função deles.

Entre não judeus, a tese seduz tanto conservadores quanto progressistas, e parece ter se consolidado em abril de 2017, com a palestra de Bolsonaro na Hebraica do Rio de Janeiro. Ambos os setores do espectro político-ideológico ignoram os protestos de judeus fora do clube e o veto à realização desse evento na Hebraica de São Paulo, que revelavam, a quem quisesse ver, uma comunidade profundamente dividida – como estava, aliás, o restante do Brasil.

Surpreende, no entanto, quando esse tipo de discurso emerge entre os próprios judeus, inclusive na voz de algumas de suas lideranças, supostamente informadas acerca da população que representam.

Houve quem dissesse que este presidente se importa conosco e quem definisse a relação com a comunidade judaica como respeitosa. Talvez seja importante questionar com que tipo de judeu Bolsonaro se importa e com quais judeus Bolsonaro é respeitoso.

Isso porque identidades não são herméticas e excludentes. Assim, ser uma coisa não implica deixar de ser outra. Um judeu nunca é só um judeu. É também conservador ou progressista, homem ou mulher, branco ou negro, heterossexual ou LGBTQIA+, empresário ou jornalista, negacionista da vacina e/ou vítima da Covid. A judeidade convive e muitas vezes é potencializada por outras formas de vida, sejam elas quais forem.

Nesse sentido, quando o presidente da República ameaça esquerdistas, está ameaçando também os judeus de esquerda. Quando ofende mulheres, está ofendendo também mulheres judias. Quando debocha de negros e gays, está debochando também de judeus negros e de judeus gays. Quando ataca jornalistas, está atacando também jornalistas judeus. Quando ridiculariza pessoas com Covid, está ridicularizando também os judeus que sofreram ou morreram de Covid.

Dada a diversidade que caracteriza a vivência judaica no Brasil, é impossível se importar ou ser respeitoso com o judeu sem se importar ou ser respeitoso com os demais grupos que compõem a sociedade brasileira.

Quem não percebe a judeidade a partir de vivências múltiplas acaba concebendo “o judeu” à imagem e semelhança daqueles que têm mais espaço para falar em seu nome e, intencionalmente ou não, confinam a experiência judaica aos limites da experiência de apenas parte dos judeus.

Ao mesmo tempo, deixa de perceber os usos que são feitos do judaísmo para legitimar e mascarar interesses de outra ordem, vinculados não propriamente à judeidade, mas ao conservadorismo, à masculinidade, à branquitude ou à condição socioeconômica.

Que o presidente e seus aliados sirvam-se desse expediente é até compreensível. Aos interessados em barrar o projeto em curso no Brasil, cabe resistir às suas estratégias.

Judeus x comunidade judaica

Seria legítimo questionar: a despeito da diversidade que caracteriza a experiência individual dos judeus no Brasil, não há pautas comuns que os unificam? Pautas às quais Bolsonaro se vincularia e que justificariam a ideia de aliança com o que se pode chamar de “comunidade judaica”, ao menos institucionalmente?

Reconhecendo essa diversidade, a Confederação Israelita do Brasil (Conib) identifica três temas como sendo aqueles que unem os judeus: combate ao antissemitismo, à banalização do Holocausto e apoio ao Estado de Israel.

Entretanto, mesmo no que se refere a estes três temas, a aliança de Bolsonaro com a comunidade judaica é duvidosa.

Em relação ao antissemitismo, tem ficado cada vez mais claro que o Governo Bolsonaro não trouxe maior segurança aos judeus no Brasil, pelo contrário. Números de dois relatórios publicados por grupos judaicos de direitos humanos mostram que são crescentes os casos de antissemitismo e neonazismo no país.

O “Relatório de Eventos Antissemitas e Correlatos no Brasil”, do Observatório Judaico dos Direitos Humanos, analisou o período de janeiro de 2019 a junho de 2022 e documentou 169 ocorrências. O mais preocupante é que os episódios neonazistas têm dobrado a cada ano: do total de 114 eventos registrados, 12 ocorreram em 2019; 21 em 2020; 49 em 2021; e 32 apenas no primeiro semestre de 2022.

Já o relatório “O antissemitismo no governo Bolsonaro”, lançado na Câmara Municipal de São Paulo com o apoio do vereador Daniel Annenberg, mapeou casos antissemitas e neonazistas entre junho de 2020 e julho de 2022. A conclusão foi a mesma: houve agravamento do cenário. O documento identifica 104 ações, o equivalente a um ato antissemita ou neonazista por semana.

Vale notar que parte significativa foi cometida pelo próprio presidente da República e/ou por seu governo, sendo os casos mais conhecidos quando o secretário de cultura Roberto Alvim repetiu um discurso do ministro da propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels; quando o assessor para assuntos internacionais Filipe Martins fez um gesto supremacista no Senado Federal; e quando uma comitiva reuniu-se com Beatrix von Storch, líder do partido alemão AfD.

O mesmo se pode dizer em relação à banalização do holocausto, que foi alavancada durante a pandemia em manifestações anti-vacina e contra o distanciamento social.

O Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo comparou medidas de distanciamento com campos de concentração; a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) utilizou slogans que evocavam o lema “o trabalho liberta”, inscrito na entrada de Auschwitz. E o próprio presidente chegou a dizer que “podemos perdoar” o Holocausto.

Restaria o apoio ao Estado de Israel. De fato, esse é o tema que mais gera confusão, dada a retórica pró-Israel de Bolsonaro e a presença de bandeiras do país em manifestações de seus partidários. No entanto, esse apoio é muito mais simbólico do que concreto.

A política externa brasileira no Governo Bolsonaro evitou atender alguns dos principais interesses de Israel, mesmo se considerarmos as promessas do presidente. A mudança da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém ficou pelo caminho. A classificação do Hezbollah como grupo terrorista não aconteceu. E ainda que seja possível identificar mudanças pontuais em votações na ONU, o posicionamento do Brasil manteve-se relativamente estável, longe de uma guinada.

Os limites da aproximação entre Brasil e Israel parecem ter ficado claros inclusive para os formuladores da política de Bolsonaro. Nas eleições de 2018, Israel foi mencionado cinco vezes em seu plano de governo. Em 2022, nenhuma vez.

E este não é o único sinal de esgotamento dessa aliança, real ou imaginada, entre Bolsonaro e a comunidade judaica. A ideia de que judeus apoiaram e seguem apoiando um único candidato perde força na mesma medida em que a diversidade da experiência judaica no Brasil vem sendo percebida socialmente. E isso está acontecendo sobretudo em função do êxito que grupos de judeus progressistas, de judias feministas, de judeus LGBTQIA+, de judeus negros, entre outros que compõem essa comunidade plural, vêm obtendo em fazer circular informações a respeito de sua história e de suas pautas.

Ao que parece, estamos diante de uma mudança política no Brasil e, desde já, é necessário admitir que estereótipos em relação aos judeus vigoram na esquerda tanto quanto na direita. Haverá, sem dúvida, muito o que fazer nos próximos anos. No entanto, será mais fácil reconstruir os laços sociais no país e lidar com os desafios que temos pela frente reconhecendo a diversidade da comunidade judaica e contanto com os aliados dentro dela.

Daniel Douek é cientista social, mestre em Letras pelo programa de Estudos Judaicos e Árabes da USP e diretor do Instituto Brasil-Israel

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