O nigún do Bruno

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Em memória de Bruno Pereira e Dom Phillips.

Pela elevação da nossa consciência do que se passa na Amazônia.

Rabino Uri Lam

“Vamos tentar fazer esse nigun indígena, do ativista desaparecido? Um abraço.” Um nigun – na tradição judaica é um canto sem palavras ou com poucas palavras, que se repete e reverbera, envolvendo corpo e alma em um mesmo movimento. Tem algo de mantra, de meditativo, contemplativo.

Numa terça-feira, 14 de junho de 2022 às 7:47 da manhã, começou, de forma despretensiosa, uma conversa entre mim e o Daniel Szafran, músico da Beth-El. Ele me enviou um instagram do cantor André Abujamra com uma gravação do Bruno sentado na mata, tranquilo e feliz. Estava de galochas, calça azul e blusa verde musgo muito úmida. No braço, um emblema com a bandeira do Brasil. No entorno, sons da mata e vozes indígenas. Escutei muitas vezes. Era, definitivamente, um nigun indígena. Cantarolei para o Dani.

Aqui começava o encontro sagrado entre tradições ancestrais: a indígena, do povo Ticuna, e a judaica – do Ticun Olám.

Bruno me parecia estar na Amazônia profunda. Eu já estive em Porto Velho, Rondônia. Ao pesquisar um pouco sobre a região, leio que Rondônia é o segundo estado da Amazônia Legal que mais perdeu áreas protegidas nos últimos anos: mais de 4 mil km² de floresta amazônica, entre 2018 e 2021. Lembro-me de horas e horas de avião com vista para uma mata interminável. Recordo-me de ter apenas entrado nas margens das margens da floresta e ter encontrado uma matzevá, uma lápide tumular judaica, logo na entrada da mata. Tenho pouca consciência do que é aquele mundo. Parafraseando meus tempos de psicólogo, Bruno estava, digamos, no inconsciente coletivo e profundo da Amazônia.

[Uri]: “Aqui está o Brunisher Nigun ou Nigun da Floresta. O que acha?”

[Dani]: “Adorei. Se pudesse fazer uma frase na língua indígena e misturar com alguma coisa nossa, ficaria uma homenagem linda.”

“Podemos colocar uma letra judaica que fale de natureza.”, respondi.

O Dani, em tom de tristeza, comentou: “Brunisher Nigun, de Bruno né?”

[Uri]: “Dani, veja o versículo Deut. 20:19.”

“Pesado hein”, respondeu o Dani.

Sim, pesado. Sentíamos a angústia de duas vidas desparecidas, mas ainda havia um sopro de esperança. Depois de escutar tantas vezes o Bruno na floresta, eu, com lágrimas nos olhos, transcrevi seu canto – sem saber o significado, mas o coração me dizia que só poderia ser algo belo –, e enviei outro áudio para o Dani, com o canto indígena e o canto hebraico: para se unir com uma oração da floresta era preciso, do nosso lado, uma oração vinda da Etz Chaim, da Árvore da Vida, a Torá. Assim surgiu o

Nigun do Bruno, Amazônia

Melodia e 1º verso: da floresta amazônica, por Bruno Pereira, desaparecido. 2º verso: Deut. 20:19.

Composição: Daniel Szafran, Uri Lam.

UAHÁNA RARÁE, UAHÁNA RARÁE,

MARINA UAKENADÊ, MARINA UAKENADÊE.

LÓ TASHCHIT ET ETZÁ, LINDÔACH ALÁV GARZÊN,

KI MIMÊNU TOCHÊL, VEOTÔ LÓ TICHRÓT.

KI HAADÁM, ETZ HASSADÊ,

HAADÁM ETZ HASSADÊ, HAADÁM ETZ HASSADÊ.

Não destrua suas árvores manejando o machado contra elas.

Você pode comer delas, mas não as derrubar.

Pois são as árvores do campo humanas

[para que consigam se retirar quando você sitiar a cidade?]

(Deut. 20:19]

Quando Dani e eu criamos este nigun, Bruno e Dom Phillips estavam desaparecidos. Quando cantamos este nigun, Bruno e Dom Phillips haviam sido encontrados, mortos. Em seguida, no Shabat, na hora do Kadish dos Enlutados, incluí os nomes de Bruno e Dom Phillips. Justos do mundo.

Este nigun ficará para sempre. Talvez para ser cantado em Tu biShvat o Ano Novo das Árvores. Talvez para ser cantado todo 17 de junho, como memória do dia em que foram encontrados mortos. Talvez para ser cantado em acampamentos, como forma de conscientizar os jovens para o amor que devemos ter a todas as árvores da vida e seus guardiões.

Rabino Uri Lam

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