Daniela Kresch
TEL AVIV – A política israelense oferece situações bizarras. Uma delas aconteceu no dia 6 de junho de 2022, acentuando a fragilidade da atual coalizão de governo, prestes a se desintegrar. Para resumir, parlamentares de esquerda votaram em favor de uma lei que beneficia colonos israelenses e parlamentares de direita votaram contra. Os dois lados parecem ter traído ideais históricos.
O assunto em questão é a Lei da Cisjordânia, uma legislação “temporária” que existe desde 1967 e que tem sido ratificada quase que automaticamente, a cada 5 anos, há 55 anos. Ela trata do arcabouço jurídico vigente nos assentamentos israelenses na Cisjordânia, estabelecendo que, nesses assentamentos, o que vale é a lei do Estado de Israel – mesmo que Israel nunca tenha anexado, na prática, a Cisjordânia ao país. Quer dizer: se algum cidadão israelense que mora em uma colônia rouba alguma coisa, ele é julgado como se estivesse em Israel. Ele também paga impostos e serve ao exército como qualquer outro cidadão israelense, mesmo estando fora das fronteiras oficiais do país.
Como se sabe, a maior parte da comunidade internacional considera a Cisjordânia como sendo “ocupada” militarmente por Israel – não como parte do país. Mesmo que a maioria dos israelenses não goste de usar essa palavra, não há dúvidas de que a Cisjordânia é um território em disputa desde a Guerra dos Seis Dias.
A Lei da Cisjordânia dá aos colonos que moram nesse território, na prática, todos os direitos e deveres dos israelenses, enquanto os outros moradores da Cisjordânia (os palestinos) estão há 55 anos sob uma legislação diferente, uma mistura de leis jordanianas de antes de 1967 e a lei marcial israelense.
No final das contas, a lei apresentada como de praxe após 5 anos, não foi renovada em 6 de junho. Isso quer dizer que não valerá mais a partir de 1o de julho. A legislação foi rejeitada por 58 votos contra 52. Os 58 votos contra a renovação da lei vieram principalmente de partidos de direita, extrema-direita e religiosos que, a princípio, apoiam os colonos da Cisjordânia.
Como pode ser que esquerdistas, que apoiam a criação de um Estado palestino, tenham apoiado uma lei que de interesse dos quase 500 mil (pouco mais de 5% da população do país) colonos que moram nesse território, onde os palestinos almejam fundar esse Estado? E como pode ser que os direitistas tenham votado contra sua própria ideologia, que é a de, no final das contas, anexar a Cisjordânia como parte de Israel.
A resposta é: política.
Trocando em miúdos, a oposição quer pressionar a já frágil e combalida coalizão do governo do premiê Naftali Bennett e do chanceler Yair Lapid. Quer derrubar de vez por todas esse governo, que já perdeu maioria e tem contabilizado baixas e derrotas. Para isso, o líder da oposição, o ex-premiê Benjamin Netanyahu, do partido de direita Likud, parece não se importar nem mesmo em trair seu próprio público e em causar um caos jurídico na Cisjordânia, local que chamam de Judeia e Samária. A oposição, em sua maioria, é formada pelo Likud, partidos ultraortodoxos e um ultranacionalista.
Já a esquerda israelense – que faz parte da coalizão – apoiou a renovação da lei para manter a coalizão viva, mesmo que não concorde com a lei propriamente dita e não seja a favor do desenvolvimento de colônias. A coalizão é formada por 7 partidos diversos – dois de esquerda, dois de centro e três direita (além de um partido árabe que apoia de fora).
O caos jurídico pode realmente começar em 1º de julho, quando a Lei da Cisjordânia expirar. O fim do status legal especial concedido aos colonos, haverá amplas consequências. Advogados que moram na Judeia e Samária, incluindo dois membros da Suprema Corte de Israel, não poderão mais exercer a advocacia. Os colonos estariam sujeitos a tribunais militares normalmente reservados aos palestinos e perderiam o acesso a alguns serviços públicos, como o de Saúde.
Depois da histórica não renovação da lei, só há mais uma possibilidade de ela continuar de pé: uma nova votação esta semana. Mas, apesar de a grande maioria dos parlamentares ser a favor da manutenção do status quo dos assentamentos, nada é garantido.
Os líderes colonos culpam Netanyahu pela situação incongruente: “Somos vítimas do vandalismo político da oposição sionista”, disse ao IBI David Elhayani, líder do Conselho Yesha (que representa os colonos). “Esses partidos foram eleitos sob a égide ideológica do desenvolvimento e fortalecimento dos assentamentos na Judeia e Samária e do Vale do Jordão. Mas estão nos traindo. A oposição poderia usar outras leis para derrubar o governo. Por que às nossas custas?”
Para ele, há apenas um traidor-mor: “Que orquestra tudo é Netanyahu, para fortalecer o culto à sua personalidade e levá-lo de volta à cadeira de primeiro-ministro”.
Não sei se a controversa lei será ou não renovada. E os detalhes sobre ela são muitos, incluindo a discussão sobre como pessoas que moram num mesmo território podem ser governadas por dois arcabouços jurídicos distintos (os colonos israelense pela lei civil de Israel e os palestinos por uma mistura de lei marcial e lei civil jordaniana). O que é mais incrível, neste caso, é como os interesses políticos podem levar parlamentares a votar contra sua própria ideologia e seus próprios eleitores.
Mas política é isso, não?