TEL AVIV – Um tenente-coronel morto numa ação do exército israelense, em 2018, foi reconhecido como “herói nacional” e recebeu uma comenda póstuma por seu sacrifício pelo Estado de Israel. Até aí, não parece ser nada fora do comum. Mas há um porém nesta história – um porém importante. O soldado morto não era judeu: era druso (um grupo religioso que corresponde a pouco mais de 1,5% dos cidadãos do país).
Mahmoud Kheir el-Din foi morto em 11 de novembro de 2018, aos 41 anos, por fogo amigo durante um tiroteio com homens armados do Hamas enquanto realizava uma longa operação especial na Faixa de Gaza. Ele era da cidade drusa de Hurfeish, na Galileia. Por questões de “segurança nacional” (não se sabe exatamente quais), o nome dele não foi divulgado, na época. Só agora, quatro anos depois, é que o público israelense ficou sabendo seu nome.
“Ele é um herói de Israel”, disse o comandante da Inteligência Militar da Forças de Defesa de Israel, general Aharon Haliva. “Depois das tantas operações em que participou, merece o respeito e a honra que lhe convém”.
A revelação levou a duas reações. A primeira foi a declaração de Kheir el-Din como herói nacional por jornais, rádios e TVs, com muito respeito e manchetes. Mas a segunda reação foi trazer à tona, de novo, todas as críticas sobre a controversa Lei do Estado-Nação, aprovada em Israel também em 2018. A lei define o país como o Estado-nação do povo judeu. Sua forma atual foi contestada pelos drusos de Israel e outras minorias árabes, que acreditam que a legislação os definiam como “cidadãos de segunda classe”.
No caso dos drusos-israelenses, a decepção foi realmente enorme. O motivo é que a religião drusa, que é um tanto misteriosa, tem um aspecto conhecido: os drusos sempre são muito nacionalistas, muito leais aos países onde moram. É um mandamento de sua religião. Portanto, os drusos de Israel são muito leais ao país – com exceção dos que moram das Colinas de Golã, na fronteira com a Síria, que se consideram sírios.
Kheir el-Din era certamente muito leal a Israel. Ele entrou no exército no fim da década de 90 e serviu na Brigada de Paraquedistas por três anos antes de ingressar na Divisão de Operações Especiais da Inteligência Militar, onde serviu até sua morte. Em 2009, ele estabeleceu uma ONG destinada a promover a comunidade drusa em Israel. No ano seguinte, ele se juntou à Acharai! (Me siga!), uma ONG que incentiva a juventude – incluindo a drusa – a se alistar no exército.
Mas a Lei do Estado-Nação o magoou muito. O jornalista Alon Ben-David, do Canal 13 da TV israelense, revelou que entrevistou Kheir el-Din poucas semanas antes de sua morte. Nessa entrevista, o tenente-coronel criticou a recém-aprovada lei: “Sempre servimos com amor e com todo o nosso coração no exército de um país que sabíamos ser um Estado judeu. Estávamos dispostos a sacrificar até nossas vidas por este país, mas quando você legisla uma lei que não passa de um tapa em nossas caras, que diz que não somos parte deste país – para nós é um insulto pessoal”.
Ben-David disse que el Kheir el-Din, que morreria semanas depois, se perguntou quem seria o primeiro (soldado das Forças de Defesa de Israel) de “segunda classe” a morrer. “Infelizmente, foi ele mesmo”, comentou o jornalista do Canal 13.
Tudo isso levou até mesmo o ministro das Finanças, Avigdor Lieberman, conhecido por suas ideias ultranacionalistas, a pedir ao Parlamento israelense (o Knesset) que “conserte” a lei. A ideia seria demonstrar aos drusos que eles não são considerados de segunda classe. O ministro das Relações Exteriores, Yair Lapid (do partido de centro Há Futuro), e o ministro da Saúde, Nitzan Horowitz (do partido de esquerda Meretz), concordaram com Lieberman – numa rara comunhão de ideias.
A maior crítica à Lei do Estado-Nação é a de que ela não muda em nada a realidade interna de Israel, apenas faz com que os não-judeus do país (75% da população) não se sintam prestigiados. A lei, por exemplo, rebaixou a língua árabe – antes oficial assim como o hebraico – para um “status especial”. Classifica o Estado de Israel como “lar nacional do povo judeu”, mas completa que “o direito de exercer a autodeterminação nacional no Estado de Israel é exclusivo do povo judeu”.
Para o autor da lei, Avi Dichter, ex-ministro da Segurança Interna e ex-diretor do Shin Bet, a lei tinha como objetivo apenas definir, em uma legislação, que Israel é um Estado judaico e democrático. Segundo ele, a lei não fala nada sobre não-judeus como cidadãos de segunda classe. Afinal, judeus que vivem em diversos países “cristãos” não são considerados de segunda classe. Há 21 países no mundo que se consideram oficialmente “Estados cristãos”, entre eles Argentina, Armênia, Costa Rica, El Salvador, Dinamarca, Inglaterra, Etiópia, Grécia, Hungria e Islândia.
Mas, num lugar tão sensível quanto Israel, a lei caiu mal para as minorias internas, principalmente porque há disputas e conflitos internos entre judeus e árabes. Não se pode esquecer, também, que há países que se definem como islâmicos (como Irã, Afeganistão e Paquistão) nos quais minorias realmente são, muitas vezes, perseguidas.
Isso sem contar com o fato de que a lei estabelece o “desenvolvimento de assentamentos na Terra de Israel como valor nacional” que deve ser encorajado e promovido. Não fica claro se a palavra “assentamento” (Ytiashvut, em hebraico) se refere ao desenvolvimento populacional no Estado de Israel ou à criação de colônias israelenses na “Terra de Israel” – incluindo aí territórios em disputa (ou ocupados) como a Cisjordânia e Jerusalém Oriental.
No final das contas, para muita gente, a lei não leva a nada de concreto, a não ser a uma sensação de mal-estar entre as minorias. No caso do oficial druso que morreu em combate, ficou claro que não-judeus também podem se sacrificar por seu país natal, Israel, e não deveriam se sentir menos cidadãos por isso.