Quando fui convidada a escrever um “caso” com o Rabino para o Projeto “Henry Sobel”, que deu origem à biografia recém-lançada, compreendi que era o recolhimento destes “casos” que formaria o painel sobre o biografado. Espero que estas histórias estejam na íntegra, no site, em breve, já que não tiveram espaço no livro. Era o intuito que eu relatasse a reza que Sobel realizou em fevereiro de 2000 como descoberta da matzeiva (lápide colocada em uma cerimônia um ano após o sepultamento, simbolizando um compromisso de não esquecimento ao falecido) das polacas enterradas sem identificação, no Cemitério Israelita do Butantã, desde meados dos anos de 1970. A recolocação do nome nas lápides se deu após a edição da minha dissertação e foi uma iniciativa da Chevra Kadisha de SP. O Rabino escolheu a data por ser a mesma da matzeiva de Leon Feffer e, segundo Sobel, o cemitério estaria cheio. Ele convidaria os presentes a o seguirem, e assim foi feito.
Fui eu que comentei com Jayme Brener, autor da biografia de Henry Sobel, sobre um texto que publiquei em 2002 e venho ampliando as versões em novas edições. Neste texto, analiso os 10 militantes das esquerdas armadas do pós-1964/8, que tinham uma origem judaica, além de um médico judeu que colaborava com atestados falsos para legitimar outras versões a estas mortes, que se deram por tortura na responsabilidade do Estado autoritário. Este médico foi aludido porque sua história cruzou com um dos 10 militantes. Neste texto estou preocupada em compreender a identidade judaica destes combatentes que não tinham Israel como possível exílio. Para eles, “ser judeu era ser brasileiro”.
Um destes 10 casos era o de Iara Iavelberg. Ao investigar o seu enterramento, fui ao Cemitério Israelita do Butantã. Ela estava na então ala dos suicidas, que ficava no Setor G, entre as quadras 25 e 28. Iara foi sepultada no Setor G/quadra 26/ lápide 57. Foi com surpresa que ao erguer o olhar, avistei a lápide de Vlado Herzog, no setor G, quadra 28, lápide 64.
Tal localização se contradiz à versão de Sobel de que o havia enterrado no meio do cemitério para demarcar a não aceitação da Comunidade Judaica ao atestado do Estado de suicídio. Há uma foto onde Sobel e Clarice Herzog estão no Cemitério, que para muitos, confirmaria a presença do Rabino no enterro. Olhando o retrato com cuidado, vemos que a lápide de Vlado já estava lá. Então a imagem é de um ano depois, na matzeiva.
Nem Sobel e nem o Rabino-chefe da Congregação Israelita Paulista, Pinkuss, estavam em SP naquele 27/10/1975, data do sepultamento. Foi a firmeza da esposa, Clarice Herzog, que conseguiu adiar o enterro para o dia seguinte à notícia da morte, uma segunda-feira. Desejava-se que os amigos fossem avisados e que o fato tivesse a visibilidade necessária. Um cortejo de cerca de 300 carros e 1000 pessoas adentraram o Cemitério Israelita do Butantã, às 11 horas daquele dia.
O corpo, após passar pelo IML, foi encaminhado no dia 26/10, ao Hospital Albert Einstein. O velório, no hospital, foi acompanhado por cerca de 600 pessoas, entre elas, Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de SP. Havia a esperança da família de uma nova autópsia, algo vetado pelos representantes religiosos no hospital, que evocando as leis judaicas onde após a lavagem e com o caixão fechado, não se abriria mais. Mesmo havendo relatos de quem participou da limpeza do corpo notar a discrepância entre um atestado de óbito de um suicida e as marcas deixadas pela tortura no corpo de Vlado.
Sublinho esta questão para que, nos tempos vividos de negacionismo, não exista qualquer dúvida de que Herzog foi assassinado pelos órgãos de repressão da ditadura brasileira, como ratificou a Comissão Nacional da Verdade.
O caixão foi recebido com pressa para o enterramento pelos funcionários da Chevra no cemitério. Mal chegou e desceu à sepultura, exigindo da viúva a imposição para que se esperasse por Dona Zora, mãe de Vlado, e se respeitasse os preceitos de que cabe à família jogar as primeiras pás de terra.
A mãe de Vlado desejava que o filho estivesse ao lado do pai, falecido três anos antes e enterrado no Butantã. Uma suposta lei judaica foi aludida para justificar que dois homens, no caso pai e filho, não poderiam estar lado a lado. Rabinos que consultei me afirmaram que nos enterramentos são as comunidades que constroem os seus costumes…
Muitas especulações são feitas para justificar o lugar escolhido para o enterramento do corpo de Vlado. Tudo indica que houve uma negociação interna na Chevra. Mas esta seguramente com pouca margem de manobra, já que os órgãos de repressão acompanharam todo o processo.
Vale lembrar que mais de 30 anos depois, quando a família de Iara quis exumar seu corpo e provar o não suicídio desta, Sobel pouco pôde fazer e aconselhou a família a lutar por esse direito na Justiça.
Para investigar as circunstâncias da morte de Vlado, os órgãos de repressão frente às divulgações que o caso recebeu, instaurou um Inquérito Policial Militar. Convocado para depor no IMP, onde poderia relatar a discrepância entre as marcas no corpo e o laudo de suicídio, Sobel conseguiu não precisar comparecer, diferente de D. Paulo, que entrou nos presídios e visitou os presos políticos, ou de outros rabinos na América Latina que se envolveram em salvar filhos da Comunidade Judaica dos porões das ditaduras.
O papel público do Rabino Sobel começaria a ser construído uma semana depois do assassinato de Vlado, durante o Ato Ecumênico na Praça da Sé, onde ele comparece, mas não foi um de seus organizadores. As contradições marcam a trajetória do Rabino, que do mesmo modo foi fundamental para determinadas alas da Comunidade Judaica paulista, como um ícone externo a estas no Brasil. Mas que ao final de sua vida, já doente e fora dos holofotes com que tanto se relacionou, pensou em apoiar Bolsonaro.
Quando relatei todas estas questões em 2002, escolhi, no texto que publiquei ao finalizar a pesquisa, não mencionar os detalhes e nem debater a narrativa do Rabino. Apenas demonstrei os lugares em que estavam sepultados Iara e Vlado. Deixando ao leitor as conclusões. De Sobel recebi um fax irado, quando o livro foi publicado. O Rabino me cobrava o seu lugar na cerimônia de sepultamento de Vlado Herzog.
Sendo a memória um fragmento da lembrança, seu processo de construção é coletivo, plural e perpassa por mecanismos de seleção. Nele, como vários autores demonstraram, estão em jogo as demandas do que lembrar e do que esquecer. Há, portanto, um território de disputa, um método de reconstrução do passado a partir do presente. Estabelecer memórias pressupõe o esquecimento, a seleção de determinados conteúdos e a supressão de outros tantos. Isto muito está em sincronia com a construção de um Arquivo Pessoal, onde se narra a história de si, e o qual o Rabino fez questão de manter e hoje está no Museu Judaico de SP.
Diferente da biografia publicada, em que Brener se deu a liberdade de concluir que Sobel decidiu não ir ao sepultamento de Vlado, eu, enquanto historiadora, não localizei qualquer documento neste sentido. Tal conclusão se choca com a versão que Sobel fez questão de construir e manter por toda a vida: a de que esteve lá e o sepultou no centro do cemitério!