A crise e guerra entre Rússia e Ucrânia mostram uma face muito interessante da política externa israelense. Apesar de ser a incontestável potência regional, com um exército altamente tecnológico e armas nucleares – que apesar de não serem publicamente declaradas, são uma espécie de segredo aberto – o país se recusa a projetar sua força para fora de suas fronteiras. Desde 1948, as forças armadas israelenses jamais foram empregadas em situações bélicas fora do país além de sua vizinhança imediata.
Quase todas estas guerras foram defensivas – a Guerra de Independência de 1948, a Guerra do Suez em 1956, a Guerra dos Seis Dias em 1967, a Guerra do Yom Kippur em 1973 e a Guerra do Líbano em 2006. A primeira se deu unicamente dentro do território do nascente Estado, invadido por seus vizinhos em uma guerra de extermínio contra os seiscentos mil judeus que aqui habitavam. Na Guerra do Suez, o estrangulamento das vias marítimas israelenses forçou a atitude beligerante contra o Egito. O mesmo que em 1967 se armava para uma ofensiva contra Israel que foi desarmada por uma espetacular ação israelense. Em 1973, foi a vez do Cairo atacar Israel de surpresa e mais uma vez, a guerra se deu dentro das fronteiras israelenses.
Apenas uma vez vimos uma guerra em que Israel projetou sua força – e os resultados foram extremamente controversos. Em 1982, para desenraizar as tropas da Organização para a Libertação da Palestina, a OLP, Israel invadiu e ocupou parte do Líbano por quase vinte anos para manter a defesa contra os crescentes ataques de milícias pró-Palestinas e os mísseis do Hezbollah. As centenas de soldados israelenses mortos e feridos e a falta de um objetivo claro resultaram na opinião publica se voltando contra o governo.
Todavia a situação israelense hoje é muito mais confortável. Em paz com dois vizinhos, em boas relações com as monarquias do Golfo, a Síria em uma interminável guerra civil, o Hizbollah tentando se segurar como força política no Líbano e o Irã ainda não apresentando sinais de um ataque no médio prazo, Israel goza de uma estabilidade que nunca possuiu.
O posicionamento de Jerusalém é claramente pró-Ocidente. Sua aliança com os EUA é sólida e é um ponto de referência quando se fala de inteligência militar e estratégica. Porém isto não se traduziu em um alinhamento automático com as prioridades ocidentais. Isto se explica pela visão tríplice da política externa israelense. A primeira esfera é a doméstica. Qualquer movimento da política externa israelense é calculado de maneira a não influenciar negativamente a dimensão doméstica do conflito árabe-israelense. Aqui é algo simples: qualquer processo de paz ou condução de operações militares com fim de garantir a segurança israelense não dependem de qualquer agente externo. A soberania israelense é o fim último, assim como a integridade de seus cidadãos. A segunda esfera é de Israel como Estado parte da sociedade das nações e legitimado pela comunidade internacional através de uma série de compromissos baseado no direito internacional e natural de ser uma nação soberana. Isto se dá pela participação ativa de Israel em órgãos internacionais, de suas missões humanitárias para países em necessidade e contribuições gerais para a humanidade. A terceira esfera é de Israel como Estado-Nação do Povo Judeu, onde este pode realizar sua autodeterminação nacional, e o Estado portanto tem um compromisso para as comunidades judaicas ao redor do mundo – comumente expressa no seu compromisso como criador e espaço criativo para a cultura, história e tradições do povo judeu e de seu pilar de legitimidade fundamental, que é de ser um porto seguro para todos os judeus que queiram imigrar e residir em seu território.
No caso da Ucrânia, todas as esferas foram vistas de maneira clara. Desde a deflagração dos conflitos em 2014, Israel tem estabelecido linhas de resgate para os judeus ucranianos, cuidando de seus interesses humanitários e de imigração para Israel. Ao se iniciarem as tensões atuais, o governo israelense rapidamente se mobilizou para oferecer canais de evacuação para os cidadãos israelenses e judeus que quisessem emigrar. Observadores externos viram com curiosidade a insistência do país em garantir tanto de Kiev quanto de Moscou linhas de evacuação para os judeus do país e suas famílias. O ministro da Diáspora Nachman Shai alocou dez milhões de dólares diretamente para garantir suprimentos humanitários para as comunidades judaicas no país, e missões israelenses foram estabelecidas em países vizinhos para receber refugiados. Tais demonstrações foram a dimensão clara da obrigação israelense com a diáspora judaica.
O silêncio inicial em relação ao conflito em si foi estratégico: Israel tem um interesse direto em boas relações com a Rússia para manter sua segurança nacional. Com a Síria tendo se tornado um terreno livre para armamentos iranianos e movimentação do Hizbollah, é de interesse nacional que a fronteira norte não se torne vulnerável. A eficácia de tal posição se nota com a liberdade que Israel ainda possui de atacar alvos que se localizam em Damasco e arredores, mesmo após denunciar de forma mais dura as ações de Moscou. Neste caso, veremos como as esferas domésticas e internacionais se confundem. Ainda quando a invasão russa não era evidente, Kiev pediu a Israel que disponibilizassem para compra o Domo de Ferro, o sistema mais avançado em matéria de bateria anti-mísseis. O governo israelense prontamente recusou, já que tal manobra poderia impactar de maneira negativa as relações com a Rússia. Remessas de armas ou de qualquer ajuda militar foram igualmente deixadas de fora das relações com Moscou, mesmo quando as nações do Ocidente começavam a transferir material para Kiev.
As conversas sobre a OTAN também pouco fizeram diferença para os interesses israelenses. O medo de que um ataque em um dos países-membros acabe por desencadear uma reação em cadeia contra Moscou, forçando países não afetados pelo conflito a enviarem tropas para uma guerra que não é de seu interesse direto, é algo visível na política externa de Jerusalém. Israel necessita de suas tropas dentro de seu território e não pode se dar ao luxo de aventuras militares. Não existe a possibilidade de o país ser arrastado para um conflito de que não quer fazer parte. Mesmo que os Estados Unidos hipoteticamente coloquem suas forças para lutar contra os russos, as Forças de Defesa de Israel não tomariam parte.
Isto não é uma operação simples. Se manter pró-Ocidente, ao mesmo tempo com boas relações com a Rússia e a Ucrânia ao mesmo tempo, e também sem pender para nenhum dos lados é uma virtude para um país que frequentemente se encontra no centro do furacão da política internacional.
Porém o neutralismo israelense não significa uma falta de compaixão humanitária que transcende tais esferas, ou que não entenda que o pragmatismo puro não é o fim último da política internacional. Uma dimensão idealista, de uma ordem internacional que idealmente se baseia em paz ou ao menos na constante ausência de conflito, dominou os últimos cem anos e produziu fenômenos como a Liga das Nações e a ONU. Israel tomou cuidado para apontar a situação problemática que a invasão russa criou para o cenário internacional, ao mesmo tempo tentando não apontar a culpa de Moscou em entrar em uma guerra de agressão contra a Ucrânia. A vagueza das declarações, pedindo o respeito à integridade territorial do país e o retorno às negociações para cessação de hostilidades, foram mais uma vez uma demonstração da diplomacia israelense. Após a intensificação da agressão russa, vimos que o tom israelense passou a acompanhar cuidadosamente a posição internacional, equilibrando declarações mais duras com uma equidistância consciente de seus limites. A linha vermelha bastante clara de não-interferência foi na transferência de armamentos. Isto seria interferir em um dos lados, mudar o balanço de forças e simplesmente tomar partido.
Ao contrário do neutralismo brasileiro, que deriva de visões idealistas tanto quanto da distância de conflitos ou possibilidade de influenciar nos mesmos, Israel pode ser diretamente afetado pelo conflito. Por isso que o governo de Naftali Bennett movimentou suas peças em uma posição pouco usual. Ao mesmo tempo que prometeu mais de trinta milhões de dólares para ajuda humanitária para o povo ucraniano – que provavelmente será maior com o envolvimento de ONGs israelenses como IsraAid ou o Mashav, a agência de desenvolvimento e cooperação do Ministério das Relações Exteriores – procurou tomar parte ativa quando viu a possibilidade, que, porém, rapidamente se mostrou ilusória, de mediar um cessar-fogo entre as partes. Isto sem dúvida é o resultado direto dos Acordos de Abraão com os Emirados Árabes, Bahrein, Marrocos e a aproximação clara com a Arábia Saudita e uma tímida reaproximação econômica com Egito e Jordânia.
Ao revigorar as possibilidades de paz com os palestinos – mesmo que distantes – Israel se reprojetou no cenário internacional menos como um problema e mais como um jogador estratégico. Sua tentativa de criar um pacto defensivo com os países do Golfo é uma maneira clara de reestabilizar a ordem regional, com resultados positivos. As tensões com o governo Biden se desanuviaram em relação ao conflito, apesar de visões contrastantes. Mesmo a União Europeia, frequentemente vista como anímica a tudo da política israelense e invariavelmente do lado dos palestinos, assinou um acordo de cooperação com Israel que dará um impulso forte na troca de alta tecnologia.
Tal habilidade de dançar em diversos casamentos – com os russos, os ucranianos, os americanos – também deixa claro que ao fim existe uma questão crucial da ordem internacional. A Ucrânia, mesmo com os protestos na praça Maidan a favor de maior integração com a Europa e seu pendor para entrar na OTAN, foi deixada sozinha para enfrentar os russos. O desespero ucraniano para conseguir armas não é estranho aos israelenses. Na Guerra de Independência em 1948, agentes secretos trabalharam incessantemente para trazer armas para o país e garantir sua capacidade de defesa. Na Guerra do Yom Kippur, a guerra poderia ter tomado um rumo extremamente diferente se não fosse pelas remessas de armas americanas.
Isto mostra que em última instância, a conexão com a ordem das nações, ajuda humanitária ou boa diplomacia não garantem proteção. As promessas de países alinhados não são devem ser tomadas como absolutas e podem falhar a qualquer momento. Não é a toa a comparação com a Suíça. Ao mesmo tempo que se mantêm neutra, nenhuma tropa estrangeira é permitida em seu território. A lenda diz que atrás de toda grama, um exército invasor encontraria um suíço armado com seu fuzil. O país não deixou sua neutralidade apagar a condenação em termos claros da agressão russa contra Kiev. Os suíços também deixam claro a primazia de seus interesses internos antes de qualquer demanda internacional e tem funcionado ao menos pelos últimos duzentos anos. É um caminho sábio a ser seguido e por 70 anos Jerusalém tem se mostrado um discípulo excepcional.