Aracy de Carvalho, chefe do setor de passaportes do consulado brasileiro em Hamburgo na década de 30, protagonizou um papel importante na fuga para o Brasil de vários judeus perseguidos pelo nazismo. É a primeira brasileira a ter recebido o título de “Justa entre as Nações” concedido pelo Yad Vashem (Museu do Holocausto).
Recentemente, a TV Globo levou ao ar uma minissérie inspirada em sua trajetória. A contribuição de Aracy, bem como as circunstâncias da época e a reconstituição da memória, são o tema desta entrevista com a historiadora Mônica Raisa Schpun, pesquisadora do Centre de Recherches sur le Brésil Colonial et Contemporain (CRBC/EHESS, Paris), e autora da obra “Justa. Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil”, que está na origem da minissérie.
1.Por que é importante o tema do Holocausto e do nazismo estar na TV aberta hoje?
Falando do Brasil, por duas razões principais. A primeira é educativa: o país tem pouco leitores e o tema é pouco conhecido pela grande maioria da população. A televisão aberta é um meio extremamente eficaz de sensibilizar o público para uma realidade histórica distante no tempo e no espaço, fora do horizonte das preocupações cotidianas.
Uma ficção audiovisual, por seu impacto imagético e afetivo, tem o poder de emocionar e de suscitar interesse em aprender mais, em informar-se, refletir sobre o tema. Ela aproxima ou atenua estranhamentos.
Isso me leva à segunda razão evocada: a história dos judeus é, também, pouco conhecida. A comunidade judaica brasileira é pequena, cerca de 100 a 120 mil pessoas, ou seja, cerca de 0,05% da população brasileira. Mas sobre os judeus e sobre esses poucos judeus brasileiros há muitos clichês, estereótipos e preconceitos. A familiarização com o tema do nazismo e do Holocausto graças a essa ficção, pode humanizar a percepção do judeu genérico, distante e estereotipado, encarnando-o. Isso cria fissuras no imaginário pré-construído, aproxima. E pode, também, suscitar interesse em aprender mais.
Rodrigo Lombardi e Sophie Charlotte em cena da minissérie “Passaporte para a liberdade” (Reprodução: Globo)
2.Qual a atualidade deste tema? Muito se fala sobre o crescimento de células neonazistas no país.
O tema é extremamente atual e não só no Brasil. Os últimos sobreviventes da Shoah estão desaparecendo. Em pouco tempo teremos depoimentos escritos, audiovisuais, mas ninguém mais estará disponível para testemunhar diretamente. E o negacionismo avança, se expande.
Na França, onde eu vivo e trabalho, a questão está presente na campanha para as eleições presidenciais de maio deste ano. O candidato de extrema direita Éric Zemmour vem defendendo uma narrativa revisionista da história, negando a perseguição dos judeus franceses pelo regime de Vichy que Pétain teria “protegido”.
Os historiadores têm se mobilizado para contradizer tais afirmações (um processo também está em curso, por “contestação de crime contra a humanidade”). Apesar de ter uma rejeição importante, Zemmour aparece, nas pesquisas de opinião, com quase 13% de intenções de voto, o que é enorme para um candidato que defende posições mais extremas que o partido lepenista. O Brasil é hoje governado pela extrema direita e assistimos ao uso, pelo presidente e membros de seu governo, de expressões próprias ao nazismo e ao fascismo e à identificação com ideias e ideários neonazistas e neofascistas.
Se as células neonazistas aumentam, ou se seus membros e dirigentes se manifestam mais, ocupando com maior facilidade e frequência a cena pública, é por se sentirem encorajados e de certo modo amparados nas ideias que defendem. E, mais uma vez, o fenômeno não é exclusivo do Brasil, muito pelo contrário.
3.Você assistiu? Que achou?
Assisti. Como indicado nos créditos, a série da Globo foi livremente inspirada em meu livro, sua fonte principal. Trata-se de uma ficção, cuja narrativa toma liberdades em relação à história. Acredito que cumpre bem seu papel: a produção é caprichada, os atores são bons, a trama mantém-se viva durante os oito episódios, os cenários escolhidos para as filmagens, no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, são de bom gosto, assim como a reconstituição dos interiores.
E, sobretudo, como disse acima, suscitando empatia do público com as personagens de Aracy de Carvalho, João Guimarães Rosa, dos judeus que pedem auxílio no consulado; a produção humaniza os judeus retratados, sensibilizando um grande número de brasileiros à história da perseguição antissemita vivida sob jugo nazista.
A decisão da Globo de trazer, ao final de cada episódio, o testemunho de um familiar de alguém que contou com a ajuda de Aracy de Carvalho para emigrar, me parece excelente. Fui solicitada pela produção para fornecer esses contatos e gostei do resultado. A presença e a fala desses judeus brasileiros tem um impacto e um significado muito particulares. Elas aproximam-nos do público criando empatia tanto com a história dos antepassados de cada um deles, que encontraram refúgio no Brasil algumas décadas atrás, como com esses mesmos descendentes, nascidos brasileiros.
4.Qual a importância do conceito de “justo entre as nações” na memória do pós-Holocausto?
Tratei desse assunto em meu livro baseando-me notadamente no trabalho da historiadora francesa Sarah Gensburger¹. O título de “Justo entre as Nações” existe desde 1953, e é dado a não judeus que se arriscaram para salvar judeus durante o genocídio nazista. O termo apareceu pela primeira vez, preconizando a prática atual, em 1942, na então Palestina, quando o genocídio encontrava-se em curso.
Antes da criação do Estado de Israel, o termo foi empregado num sentido diplomático, visando beneficiar as relações exteriores da Palestina judaica. Essa mesma concepção vigorou no momento da institucionalização do título de “Justo”, por uma lei votada pela Knesset [parlamento israelense] em agosto de 1953. Mas foi somente com o processo Eichmann, em 1961, que tomou realmente corpo o desejo de se homenagear pública e internacionalmente os “Justos entre as Nações”.
No final do processo, uma lista de “Justos” foi evocada, sublinhando a nacionalidade de cada um, num esforço para solidificar as relações diplomáticas israelenses, mostrando que Israel não tinha olhos somente para os criminosos nazistas, mas reconhecia também — e honrava — os cidadãos de cada país que tinham agido em favor dos judeus.
No ano seguinte, com o aumento das solicitações de reconhecimento de “Justos”, Yad Vashem abriu um serviço administrativo especificamente voltado ao tema. O formato escolhido para se homenagear os “Justos” foi o da plantação de árvores em seus nomes na “Avenida dos Justos”, além da atribuição de diplomas e medalhas. As árvores plantadas em solo israelense simbolizam a aproximação destes não judeus que, de protetores ou “amigos” dos judeus, passam a “amigos de Israel”, enraizando-se no solo do Estado judeu.
A clara preocupação diplomática que envolvia o assunto manifestou-se, sobretudo, pela presença de representantes do Ministério das Relações Exteriores não somente dentre os responsáveis por tais decisões, como na comissão nomeada em 1962 para examinar os nomes a serem reconhecidos.
Capa do livro “Justa. Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil”, de Mônica Raisa Schpun (Foto: divulgação)
A partir de meados dos anos 1960, houve um deslizamento do sentido dado a essa comemoração memorialística entre a concepção diplomática original e a atual. O reconhecimento da ação desses “salvadores” não judeus exprime hoje, antes de tudo, um esforço em valorizar a coexistência entre judeus e não judeus dentro de um mesmo país, no qual os segundos socorreram os primeiros. Essa acepção atual foi emprestada para honrar os “Justos” ruandeses, que favoreceram a convivência entre tútsis e hútus.
5.Que significa ser justo?
O termo “Justo entre as Nações” é a tradução de uma expressão hebraica de origem rabínica referente aos não judeus que temiam a Deus e, por extensão, àqueles gentios que exprimiam uma atitude amigável em relação ao povo de Israel.
Do ponto de vista etimológico, parte de uma visão da relação antagônica e hostil entre judeus e não judeus. Porém, a fórmula comporta, ao mesmo tempo, uma derrogação implícita quanto ao princípio de separação entre ambos: na acepção bíblica, pela crença no mesmo Deus e pela atitude amigável desses gentios; na acepção contemporânea, que nos toca aqui, porque tanto o salvamento, quanto seu reconhecimento, os aproxima.
Assim, graças a essa brecha no sentido original do termo, a prática de reconhecimento aos “Justos” por seus feitos — e a percepção que acompanha tal prática — permite nutrir, segundo um princípio de (re)conciliação, um ideal de concórdia e de convivência interétnica, que se encontra deste modo favorecido.
6.Qual a relevância de não-judeus terem recebido um título como esse no Yad Vashem? Quantas pessoas receberam este título?
A questão tem implicações políticas cujo sentido evoluiu no tempo. Como indiquei acima, a partir de meados da década de 1960, o simbolismo político envolvido na atribuição desse título deslocou-se para dentro dos países de origem dos “Justos” reconhecidos. O que trouxe consequências para além das fronteiras de Israel e de suas relações internacionais – e até hoje.
Um exemplo paradigmático é o da Polônia, país com a maior comunidade judaica antes da guerra (mais de 3 milhões de judeus), dos quais 90% foram exterminados. O governo ultraconservador atual vem investindo em um esforço geral de apagamento do antissemitismo e da colaboração polonesa no extermínio dos judeus e, para tal, procura realçar a todo custo a ajuda oferecida pela população aos judeus perseguidos pelos alemães.
Nesse sentido, graças ao projeto “Called by Name” (“Chamados por seu nome”), lançado no início de 2019, vem buscando poloneses que teriam ajudado judeus naqueles anos a fim de homenageá-los internamente. De 17 poloneses homenageados por esse programa, somente quatro foram reconhecidos por Yad Vashem enquanto “Justos”. Esse exemplo mostra a importância das políticas memoriais, que podem estar na base de uma reescritura da história e, também, a ressonância internacional do título de “Justo” até hoje.
O caso do Brasil, que estava longe do terreno da guerra e das perseguições, é muito diferente. Podemos dizer que através das diversas homenagens feitas aos dois “Justos” brasileiros reconhecidos – Aracy de Carvalho (em 1982) e Luiz Martins de Souza Dantas (em 2003) –, reafirma-se uma dupla realidade. Em primeiro lugar, o fato de que, no contexto da política imigratória antissemita do governo Vargas, com suas circulares secretas, nem todos foram “injustos”: houve ao menos dois “justos”. Desse ponto de vista, não só a discriminação mantém-se real, mas abre-se uma brecha. Mas brecha para quê? É o segundo aspecto dessa dupla realidade.
A brecha aberta também é dupla. Ela indica, por um lado, a “amizade” pelos judeus, vinda de membros da diplomacia e funcionários do governo brasileiro, responsáveis diretos pela aplicação da política antissemita. Pois os judeus que, assim, puderam ingressar no Brasil, não chegaram no país somente apesar da política implantada e de seus responsáveis, mas também graças a alguns deles, não menos legítimos que os demais.
Além disso, essa entrada, menos ilegítima do que poderia ter parecido no início, já que descortina fissuras no seio do próprio antissemitismo oficial, abre-se para uma possibilidade de expressão da identidade judaico-brasileira contemporânea. Desenha-se, assim, um caminho para que o grupo possa assumir plenamente seu lugar no seio da sociedade brasileira, evocando e homenageando publicamente seus “Justos”, brasileiros de visão, verdadeiros brasileiros.
Trazendo à tona a ação desses indivíduos, minoritários, mas ativos, recupera-se valores não menos brasileiros, que teriam sido colocados na sombra pela política sombria do período. E encontra-se uma ponte nada desprezível com a sociedade englobante, já que o orgulho é certamente compartilhado em torno desses heróis internacionalmente consagrados por seu humanismo, por terem trabalhado em benefício de uma causa que, no contexto atual, aparece como meritória.
Enfim, parece-me que com a série da Globo/Sony sobre Aracy de Carvalho, chegamos a um grau inédito de pertença a uma cidadania comum, pelo alcance da televisão na vida dos brasileiros. Vale notar o paradoxo disso ocorrer justamente em um contexto de explosão das manifestações de racismo, de antissemitismo e mesmo de elogio explícito ao nazismo no seio da sociedade brasileira.
Para responder à segunda parte da pergunta, quando publiquei meu livro, em 2011, Yad Vashem havia reconhecido cerca de 22 mil “Justos”. Destes, somente 30 trabalhavam nas representações diplomáticas, eram membros das legações, cônsules honorários ou representantes da Cruz Vermelha. Dentre esses 30, dois eram brasileiros e Aracy de Carvalho era a única mulher. Hoje esse número aumentou, chegando a quase 28 mil, sendo que há uma grande disparidade entre os países. Os poloneses reúnem o maior número, com 7.177 “Justos”, seguidos pelos holandeses (5.910) e pelos franceses (4.150).
7.Quais os critérios do Yad Vashem?
O reconhecimento é feito a partir da manifestação dos próprios judeus, que indicam aqueles a quem acreditam dever suas vidas. Ao menos dois testemunhos diretos são necessários para compor um dossiê (no caso de Aracy de Carvalho, isso foi feito por Margarethe Levy e Günter Heilborn).
Aracy de Carvalho (no centro), Margarethe Levy e Eduardo Tess, em foto tirada em 25 de julho de 1987 (foto: editora Record)
A partir dessa primeira exigência, podemos destacar dois critérios considerados fundamentais pela comissão que julga os dossiês. O primeiro é o do risco, conscientemente incorrido pela pessoa que salva quando decide agir. O que não quer dizer que a leitura feita seja rígida: os responsáveis pelo exame dos dossiês utilizam uma acepção flexível do risco incorrido, que não se limita ao risco de vida, incluindo risco de encarceramento, de perda de estatuto social, de emprego, ou mesmo de sanções.
O segundo critério diz respeito à gratuidade da ajuda, que deve ser absolutamente desinteressada: a busca de benefícios materiais pessoais é considerada um obstáculo à obtenção do título. Daí a polêmica ocorrida em torno do dossiê de Oskar Schindler, acusado de ter se aproveitado dos judeus que salvou, mantendo-os como mão de obra escrava em sua empresa.
8.Qual foi a contribuição de Aracy de Carvalho? O que está documentado?
Aracy de Carvalho contribuiu de várias maneiras. O que não era algo simples. Pois movida pelo desejo de ajudar os judeus que se apresentavam no consulado, enfrentava não somente as barreiras impostas pela política etnicamente restritiva do regime varguista, mas também aquelas ligadas à sua posição hierarquicamente subalterna. Isso porque ela preparava os dossiês de demanda de visto, mas não os assinava, submetendo-os ao cônsul. Sua caligrafia aparece nos passaportes; sua assinatura, nunca.
Minha pesquisa é um estudo de história das migrações e adota voluntariamente uma perspectiva micro-histórica: meu objetivo maior foi o de traçar um retrato coletivo de um pequeno grupo de refugiados, alcançando a dimensão cotidiana de suas vidas pré e pós-migratória. Assim, quanto à documentação brasileira, examinei um número limitado de dossiês de pedido de visto e de regularização da permanência (e, para as mesmas pessoas, consultei fontes alemãs).
Dentro da minha amostragem, encontrei três irregularidades cometidas por Aracy. A primeira delas refere-se a dois casos que examinei. Cada consulado brasileiro no Reich era responsável por sua própria circunscrição. Assim, alguém que vivesse em Berlim não poderia ter seu visto concedido em Hamburgo. Contudo, Ivan Brager, o peleteiro de Margarethe Levy, e sua esposa Cäcilie viviam em Berlim e, com passaportes emitidos em Berlim, receberam vistos em Hamburgo, em janeiro de 1939. Inge e Günter Heilborn não viviam em Berlim, mas em Breslau, também fora da circunscrição do consulado de Hamburgo.
O casal Heilborn chegou em Hamburgo poucas semanas antes de emigrar. Inge veio antes (e encontrou Aracy), pois Günter fora detido durante a Noite de Cristal e estava internado em Buchenwald. Ela conseguiu tirá-lo do campo, com a ajuda de um advogado. Os passaportes de ambos foram emitidos em Hamburgo, mas o casal realmente não era residente na cidade: o dossiê financeiro que precedia a emigração, exigido pelos nazistas, não foi feito ali, como pude constatar durante a pesquisa na Alemanha. Nunca saberemos como conseguiram que seus passaportes fossem emitidos em Hamburgo, mas sabemos que, para eles, isso foi mais fácil do que conseguir um visto em Breslau ou em outra cidade.
Nesse caso, nenhuma irregularidade foi cometida, mas Aracy teve contato pessoal com o Inge e, depois, com o casal, que manifestou publicamente seu reconhecimento aos “conselhos recebidos”, entre outras coisas.
A segunda irregularidade que constatei refere-se ao visto da família Marcus (Franz, Gretchen e a menina Hannelore). Franz também fora detido durante a Noite de Cristal e enviado para o campo de Sachsenhausen. Enquanto estava internado, Gretchen conseguiu mandar a filha para a Holanda e saiu em busca de vistos que, em um primeiro momento conseguiu “comprar” no consulado do Uruguai. Entretanto, ao voltar ao consulado para buscar seus passaportes visados, já tendo adquirido as passagens de navio e cuidado dos demais trâmites exigidos pelos nazistas, descobriu que o cônsul havia sido removido do posto. A solução foi dada por funcionários da companhia de navegação, Hamburg-Süd, que lhe propuseram o Brasil como novo destino. Obteve seus vistos sem nunca ter entrado no consulado. Aracy conhecia de fato funcionários da companhia, como um certo Unger, um de seus correspondentes.
O Uruguai apareceu como destino da família na ficha computando as doações feitas à comunidade judaica local: a troca de destino foi feita realmente na última hora. Vale dizer que não se trata realmente de uma irregularidade, pois não há rastros visíveis, mas a ajuda prestada, em um momento de grande angústia, em que o cerco se fechava, afastou-se da norma.
A terceira e última irregularidade que constatei refere-se ao visto de Margarethe e Hugo Levy. Margarethe não queria entrar no Brasil com visto de turista, mas aproveitar a brecha introduzida pela Circular Secreta n° 1.249 (de setembro de 1938) que autorizava a concessão de vistos permanentes a judeus em alguns casos precisos, como o de “capitalistas”, desde que pudessem transferir ao Brasil a soma de 500 contos de réis.
Porém, segundo afirmou em nossas entrevistas, a soma era difícil de reunir naquele momento: o casal tinha mandado parte de suas reservas para fora do país com conhecidos, tentando evitar as altas taxas cobradas pelos nazistas sobre o capital dos judeus emigrantes. Com a Noite de Cristal, as coisas se aceleraram e ela deve ter desistido de tentar reunir a soma exigida. Em seu passaporte, lê-se, com a caligrafia de Aracy, a seguinte menção:
Temporário — visado conforme o que dispõe o artigo 280, do decreto nº 3.010, de 20 de agosto de 1938. Temporário para ser regularizado no Brasil. Foi effectuado o deposito de 98:860$000 (noventa e oito contos, oitocentos e sessenta mil réis) no Banco do Brasil em S. Paulo, dinheiro proviniente do Estrangeiro, conforme carta de 26‑9‑1938 desse Banco, archivada neste Consulado Geral.
Ou seja, Margarethe e Hugo Levy viajaram, como tantos outros, com vistos temporários (de turistas). Mas mandaram uma certa soma ao Brasil que ficou registrada no passaporte. Entretanto, essa soma correspondia a pouco menos de 20% do total exigido para a categoria “capitalistas” criada pela Circular Secreta e não permitia, de modo algum, que o visto fosse “regularizado no Brasil”.
De fato, os vistos “temporários”, como os do casal Levy, não eram passíveis de serem regularizados, apesar de sabermos que, na prática, os judeus que chegaram com vistos temporários acabaram ficando no país, ainda que passando pelo estatuto “precário” que os impedia de trabalhar oficialmente e, também, de trazer os parentes deixados na Europa. Para emitir “cartas de chamada” e trazê-los, precisariam ter sua permanência regularizada o que, para o grupo que segui, só ocorreu depois da guerra, com uma única exceção: Margarethe e Hugo Levy.
A regularização da permanência de ambos, que percorreu as mesmas etapas e trâmites dos demais (sem, porém, passar pela etapa do estatuto “precário”), aconteceu em três meses, um recorde. Segundo Margarethe, isso se deu graças à intervenção de um amigo de Aracy, o delegado de polícia Soares Caiuby, que, a pedido dela, teria ajudado a amiga hamburguesa.
Além dessas irregularidades ligadas à concessão de vistos, Aracy ajudou de outras formas, que ultrapassavam suas funções no consulado. À título de exemplo, Margarethe afirmou que Aracy escondeu Hugo em sua casa depois das violências da Noite de Cristal, que duraram alguns dias; Hugo teria ficado um ou dois dias na casa de Aracy, até que Margarethe encontrasse um esconderijo seguro.
Margarethe afirmou também ter entregado a Aracy algumas joias que não declarou aos nazistas, e que Aracy acompanhou o casal até dentro da cabine do navio, onde esconderam as joias. Outras histórias existem no mesmo teor, que não podemos provar. Uma delas, porém, merece menção.
Segundo Margarethe, seu peleteiro Brager teria deixado com Aracy, em Hamburgo, uma pulseira‑relógio “de brilhantes”, que ela levou ao Brasil, em 1942, mas não teve mais notícias do paradeiro do proprietário (que, apesar de ter desembarcado em Santos, ao que tudo indica, não fincou âncora no Brasil). Em 22 de janeiro de 1946, o Comitê Britânico de Socorro às Vítimas da Guerra escreveu a Aracy agradecendo-lhe pelos “serviços” que teria prestado nos festivais “Cocktails Nações Unidas” e por sua ajuda no “Bar Aliados”. Agradeceu-lhe, também, por uma doação que teria feito, de uma “pulseira‑relógio valiosa”.
9.Defina o heroísmo de Aracy.
O heroísmo de Aracy de Carvalho aproxima-se do de muitos outros “Justos”. Penso no caso de uma família francesa que estava sendo levada pela polícia no momento em que o filho menor voltava da escola a pé e aproximava-se do prédio. Uma conhecida estava passando e viu a cena: o menino caminhando, distraído e, mais à frente, a polícia embarcando o resto da família. O que fez essa senhora, não judia, naquele instante preciso, pegar o menino pelo braço e afastá-lo, evitando que tivesse o mesmo fim do resto da família? A decisão, nesse caso, não foi antecipada, mas fruto de uma humanidade irrepressível.
Aracy de Carvalho não antecipou o que aconteceria ao procurar (e encontrar) seu emprego no consulado brasileiro de Hamburgo. Seu objetivo era sustentar-se a si e a seu filho, organizar sua vida pessoal na Alemanha. Mas ao defrontar-se com a realidade da quantidade crescente de candidatos ao refúgio e ao testemunhar cotidianamente a violência antissemita, sua reação de empatia manifestou-se claramente.
Para além da documentação diplomática, suas agendas e sua correspondência pessoal mostram que se preocupou com o destino de judeus conhecidos, além daqueles com os quais interagia no consulado. O sociólogo Alexis Spire, pesquisando os funcionários públicos franceses que recebem imigrantes nos guichês, mostrou a grande margem de manobra que possuem no dia a dia, facilitando os trâmites ou dificultando-os, tomando pequenas decisões que dão de antemão uma direção à situação da população vulnerável que acolhem .
Aracy empenhou-se em ajudar movida, a meu ver, pelo mesmo senso de humanidade que se exprime no exemplo que descrevi acima: algo que seguiu em seu cotidiano, buscando alargar tanto quanto lhe foi possível, com coragem e criatividade, a margem de manobra de que dispunha.
10.O que é a gratidão em tempos de terror?
Sem pretender uma resposta global, dois elementos, a partir do que estudei, merecem ser mencionados. Em primeiro lugar, que a gratidão se liga fortemente à consciência de que a ajuda recebida toca à sobrevivência: trata-se de fato de um salvamento. E não em sentido geral, mas personalizado. Pois dentre aqueles que tratei em meu livro, somente um pôde reencontrar-se com a irmã e a mãe no Brasil. Os demais deixaram seus familiares, e os pais em particular, na Alemanha. E esses foram assassinados.
Em segundo lugar, é importante ter em mente o contexto de perseguição e violência crescentes vivido por esses refugiados entre 1933 e 1938-39. Pude reconstituir esse período para o grupo que retratei graças aos arquivos alemães e, em particular, ao dossiê preparado pela Presidência Regional de Finanças nazista condicionando a autorização à emigração (Oberfinanzprasident).
Pude, também, refletir sobre o trabalho de memória realizado por cada um, algum tempo depois, quando, já instalados no Brasil, voltaram novamente seus olhos à Alemanha para pedir reparação de guerra, compondo um outro dossiê (Amt fur Wiedergutmachung), também nominativo. Neste, as perdas de todo tipo, financeira, educacional, profissional, afetiva, são narradas. Foi-me possível, assim, confrontar a narrativa memorial posterior com aquilo que foi vivido e documentado no momento que precedeu a emigração, marcado pela perseguição nazista.
O terror sofrido e os desafios impostos pelo exílio, além do luto pelos que desapareceram, encontram-se claramente documentados nesses dois dossiês. Não é à toa que, em meio à violência exacerbada, às humilhações, à desumanização, atitudes e gestos humanos (“justos”) deixaram marcas indeléveis na memória dos que os receberam.
11.Paralelos possíveis entre a atividade de Aracy e de Souza Dantas.
Apesar de os dois estarem incluídos na pequena minoria dos 30 “Justos” que, segundo as estatísticas já mencionadas de Yad Vashem, do momento em que escrevi meu livro, trabalhavam em representações diplomáticas, as atividades de ambos são extremamente diferentes.
Em primeiro lugar, por conta das posições que ocuparam na hierarquia da diplomacia brasileira: Luiz Martins de Souza Dantas era embaixador; Aracy de Carvalho obteve a duras penas um contrato local, em Hamburgo, enquanto funcionária do consulado. Souza Dantas assinou os muitos vistos que decidiu fornecer, desrespeitando conscientemente as regras em vigor.
Aracy de Carvalho, ainda que movida por um forte desejo de ajudar os judeus que a solicitavam, tinha uma autonomia menor de decisão, pois não assinava os vistos: ela orientava os refugiados e preparava os dossiês. Antes da emissão dos vistos, no seu caso, ela precisava passar por mais etapas decisórias do que Souza Dantas, mais próximo do final da cadeia que atuava na aplicação da política migratória.
Quanto a isso, apesar de ser incluída na minoria ínfima daqueles que agiram nas representações diplomáticas, Aracy de Carvalho estava mais próxima da grande maioria dos “Justos”, cujas ações de salvamento, que envolveram esconderijos, ocultamentos, deixaram poucos vestígios para além dos depoimentos feitos por testemunhas diretas.
Uma segunda diferença emerge quanto à atuação dos dois “Justos” brasileiros ao solicitarmos a categoria de gênero. Aracy de Carvalho é frequentemente identificada por ter sido a segunda esposa de João Guimarães Rosa, seu título de “Justa”, menos conhecido, aparece a reboque dessa primeira identificação enquanto “esposa de”. E, para complicar a equação, o casal conheceu-se no consulado de Hamburgo, onde Rosa iniciou sua carreira diplomática como cônsul-adjunto. Assim, a relação amorosa mescla-se à relação profissional. E esta é hierárquica, colocando o futuro grande escritor em posição superior à de sua esposa no consulado de Hamburgo.
Apesar de “Justa”, Aracy continuou (continua) sendo, para muitos, “esposa de”, tanto do grande escritor, quanto do diplomata. E nisso ela não está sozinha, já que a situação é atravessada pela ordem do gênero e a figura da “esposa de” é tão comum quanto incomum é seu hipotético simétrico “esposo de”.
Nesse sentido, o que teria acontecido se João Guimarães Rosa tivesse tomado a dianteira na ajuda dada aos judeus em Hamburgo e recebido o título de “Justo” no lugar de Aracy de Carvalho? Será que o casamento dos dois e o fato que trabalharam juntos, sendo que ela ocupava o cargo de Chefe do serviço de passaportes, teriam sido lembrados, entremeando-se à sua ação? Será que uma eventual colaboração entre ambos teria sido evocada? Provavelmente não: a narrativa de suas atividades profissionais (e para-profissionais) independeria de sua vida íntima. Não estou defendendo uma leitura ou outra, mas apenas assinalando uma assimetria estrutural.
No caso de Aracy de Carvalho, tanto sua posição na hierarquia do consulado e o fato que nunca assinou vistos, quanto o fato de ter sido “esposa de” João Guimarães Rosa, com quem compartilhou, também, do mesmo espaço de trabalho, trouxe e ainda traz dúvidas e desconfianças quanto à sua ação em prol dos judeus de Hamburgo. Para ela, o título de “Justa” não é suficiente, sua posição é de certa maneira vulnerável, sua legitimidade, frágil.
12.Como era a relação dela com os refugiados?
A única relação que conheço bem é a que manteve com Margarethe Levy, que constitui o fio condutor do meu livro. Fui apresentada a Margarethe pelo filho de Aracy, Eduardo Tess que, ao fim de nosso primeiro encontro, telefonou para Margarethe, com quem falava em alemão. Ela me recebeu em seguida, naquela mesma tarde. Durante as duas primeiras entrevistas que fizemos, Margarethe manifestou de muitas maneiras sua admiração profunda e sem falhas por Aracy. Ao lhe perguntar se as duas eram amigas, ela respondeu afirmativamente.
Durante nosso terceiro encontro, insisti sobre esse ponto, dizendo-lhe que sua admiração parecia referir-se mais à gratidão que envolvia a relação entre ambas, por razões evidentes, do que à amizade que, para existir, demanda simetria. E voltei a questioná-la sobre a realidade dessa amizade. Sua resposta foi então sem ambiguidades: afirmou que fora confidente de Aracy.
Foi assim que construí a estrutura do livro, apesar de não ter podido ouvir Aracy sobre isso, limitando-me a algumas poucas referências a Margarethe, feitas em suas agendas e a outros momentos e situações de convivência entre as duas que pude documentar.
As duas conheciam-se desde 1936, mas Margarethe e seu marido só emigraram no final de 1938. E diferentemente dos demais judeus cujos percursos migratórios segui, Aracy colocou Margarethe em contato com sua mãe, em São Paulo, indicando, de fato, que ambas tinham uma ligação pessoal. Ligação que, de pessoal, tornou-se familiar e teve longa duração.
Afora Margarethe Levy, quatro outros refugiados manifestaram sua gratidão a Aracy de Carvalho pouco depois de chegarem ao Brasil. Os dois primeiros são o casal Inge e Günter Heilborn que chamaram sua primeira filha, nascida em São Paulo, em 1940, de Marion Aracy.
Pude constatar ainda o reconhecimento de Hans Hochfeld e Horst Brauer, que emigraram juntos, ainda jovens e solteiros. Em setembro de 1942, souberam que Aracy regressara pouco antes da Alemanha e localizaram seu endereço em São Paulo. Horst tinha cartões de visita com seu nome impresso. Foi o que usaram, acrescentando à mão o nome de Hans. No verso do cartão, com a data de 15 de setembro, escreveram um pequeno bilhete a Aracy, no qual lhe agradeciam formal e polidamente “pello seu auxilio em Hamburgo que possibilitou a nossa vinda ao Brazil”.
Para além disso, vale lembrar que em seu depoimento a Yad Vashem, Günter Heilborn ampliou a um grupo de cerca de 15 candidatos a vistos, que estiveram no consulado de Hamburgo ao mesmo tempo que ele, sua percepção da atenção personalizada dispensada por Aracy, sublinhando sua “paciência” e os “conselhos amigáveis” que fornecera. Dentre tais conselhos, talvez tenham tratado da emissão do visto em Hamburgo, cidade na qual o casal Heilborn não residia de fato; foi o que declarou sua filha, Marion Aracy, anos depois.
Günter também declarou pudicamente, com seu português ainda hesitante, em uma carta que pude consultar, da época da preparação do dossiê de reconhecimento do título de “’Justa”, que a “paciência” de Aracy era ainda mais louvável tendo em vista que acabara de sair de Buchenwald, onde fora internado durante a Noite de Cristal e precisava, como outros, “sair do país, para não voltar”.
13.No seu livro você escreve sobre um judeu que organizou a imigração de judeus da Alemanha junto com Aracy, através de um escritório judaico de imigração. Qual é a importância da carta que ele escreveu para Aracy, em termos simbólicos e práticos?
O documento é realmente uma preciosidade. Trata-se de uma carta dirigida a Aracy de Carvalho, no final de dezembro de 1941, por Ludwig Israel Freudenthal, responsável pelo Escritório de Consultoria de Hamburgo da Seção de Emigração da União de Judeus na Alemanha (os judeus foram proibidos de empregar a expressão “judeus alemães”, o que explica o “na” Alemanha). Na época, a organização estava suspendendo definitivamente suas atividades. Antes disso, Freudenthal sentou-se diante de sua máquina de escrever e enviou a Aracy de Carvalho agradecimentos em nome de sua comunidade:
Ao longo dos muitos anos em que desenvolvemos intensas relações comerciais com o Consulado geral, a senhora sempre nos aconselhou e defendeu os interesses de nossos protegidos do modo mais atencioso e significativo possível.
A senhora socorreu incessantemente estas pessoas com simpatia e calor humano, pronta a ajudar quem lhe procurava. Com seus conselhos e sua vasta experiência de funcionária competente do consulado, engajou-se por cada um que se dirigiu à senhora e muitos dos candidatos à emigração que obtiveram êxito em sua intenção podem atribuí-lo ao seu apoio.
O abaixo-assinado quer expressar um especial agradecimento à senhora, que de modo solícito e constante auxiliou em grande parte na representação dos interesses dos imigrantes.
Terminou a carta, sempre com a mesma dignidade reservada e palavras tocantes, fazendo-lhe votos para o futuro, num momento em que o seu próprio se anunciava dos mais negros:
Esperamos que a senhora tenha sucesso e satisfação em cada um de seus empreendimentos por sua nobre e bem-sucedida atuação em todos os sentidos. Sempre nos lembraremos com gratidão de seu trabalho no interesse de nossa causa.
Freudenthal nascera em Gotha, na Turíngia, no dia 4 de abril de 1885. Tinha, então, 56 anos em dezembro de 1941 e trabalhava em prol dos judeus hamburgueses em um momento em que a emigração não fazia mais parte da política nazista e as deportações já estavam acontecendo na cidade havia cerca de dois meses. Ele mesmo não deixou o país a tempo de evitá-las mas, ao contrário, permaneceu à frente de sua comunidade, auxiliando aqueles que quiseram ou puderam escapar. No dia 19 de julho de 1942, foi deportado para Theresienstadt com sua esposa Else e, dali, no dia 16 de outubro de 1944, para Auschwitz, onde ambos foram assassinados.
Sua carta traz vários elementos interessantes. O primeiro, mais evidente, é que Aracy não era conhecida somente daqueles que se apresentavam individualmente no consulado à procura de um visto. Tinha uma interlocução mais estruturada com a comunidade judaica de Hamburgo, cujos membros e “protegidos” também recebia por intermédio do organismo dirigido por Freudenthal. A organização contava com seu apoio e encontrou nela uma resposta claramente positiva a suas expectativas. A receptividade demonstrada por Aracy, segundo as palavras expressas por mais esse judeu reconhecido, estava à altura daquilo que tanto Margarethe Levy quanto Günter Heilborn expressaram nos depoimentos que fizeram a Yad Vashem. Com a diferença de que Margarethe e Günter sobreviveram com seus cônjuges e começaram vida nova no Brasil, contrariamente a Freudenthal.
Além disso, e sem rodeios, Freudenthal declarou que o sucesso da emigração daqueles que conseguiram concretizar sua emigração deveu-se ao auxílio de Aracy. Isso fica ainda mais claro no trecho em que mencionou as “intensas relações comerciais” desenvolvidas com o consulado geral, cujo teor exato nunca conheceremos: as hipóteses podem ser extremamente numerosas, mas sem qualquer fundamento. Nessa passagem, o autor da carta desvelou que, para os membros de sua organização, o contato era mantido com o consulado, como instituição. Contudo, afirmou, quem ali se empenhava em resolver os problemas era ela (que “sempre nos aconselhou e defendeu os interesses de nossos protegidos do modo mais atencioso e significativo possível”). E a carta foi-lhe enviada a título pessoal.
Assim, ficamos sabendo que Freudenthal e seus colegas seguiam o desfecho dos casos que enviavam ao consulado. Resta saber se Aracy o conheceu pessoalmente, se ele esteve no consulado, se ela frequentou sua organização, se tinha ali outros interlocutores. Nunca saberemos. Como nunca poderemos reconstituir inteiramente a rede de pessoas que se envolveram, com e como Aracy, no processo de favorecer e facilitar a emigração dos judeus de Hamburgo para o Brasil, salvando-os da deportação e do extermínio, algumas das quais mencionei acima e em meu livro. Podemos persar, por exemplo, que graças a essa interação, Günter e Inge Heilborn conseguiram obter passaportes emitidos em Hamburgo, sem residirem na cidade. Tratava-se de uma pequena irregularidade, mas que permitiu ao jovem casal deixar rapidamente a Alemanha, depois do internamento de Günter em Buchenwald.
Enfim, a carta de Freudenthal indica claramente que sua organização via em Aracy uma aliada, alguém em quem puderam se apoiar para salvar seus “protegidos”. Não é à toa que, em dezembro de 1941, quando seus dias não deviam ser fáceis, encontrou tempo, disposição e calor humano para sentar-se diante de sua máquina de escrever e dirigir-se por escrito a Aracy de Carvalho. Trata-se de uma peça chave do seu dossiê de “Justa”, inclusive porque, atrás da assinatura de Freudenthal, outras podem existir, que não conhecemos: ele dirige-se no plural, em nome de seus colegas e de seus “protegidos”. Mergulhado em seu tempo, Freudenthal só podia ter uma visão parcial dos fatos e provavelmente não conhecia o fim que o aguardava. Mas vinha assistindo a tanta destruição, em meio a tanta violência, que provavelmente, ao escrever, agiu com lucidez, preocupando-se em deixar, não somente para Aracy, mas para nós, esse documento evocativo.
A historiadora Mônica Raisa Schpun (Foto: divulgação)
[1] Les Justes de France:
politiques publiques de la mémoire (Presses de SciencesPo, 2010).
d’un sens pratique: le travail bureaucratique des agents du contrôle de
l’immigration”. In Pierre Fournier, et al., orgs. Recherches.
Observer le travail: histoire, ethnographie, approches combinées (La
Découverte, 2008, p. 61‑76).