Foi um exercício de paciência manter-me a mesa quando um amigo, também progressista, citou “Os protocolos dos sábios de Sião” como fonte em um debate. O mesmo argumento já utilizado por Hitler, ainda que em outros tons, era agora instrumento que educava parte da esquerda brasileira. Há muitas obras escritas que colocam o povo judeu como uma ameaça, e que dão subsídio para setores da esquerda entrarem em debates sem real interesse em ouvir as opiniões discordantes. Na verdade, tenho comigo que nunca foi um debate, sempre foi um monólogo. Discursam para seus pares, e se unem, muitas vezes, à direita radical para atacar os pensamentos vindos de uma terceira via ponderada.
A direita radical só existe para combater a esquerda radical, e é nesse momento em que os ponteiros se alinham e se encontram às 12h: a extrema-direita segue a contramão do progresso, fazendo o ponteiro do relógio girar no sentido anti-horário; a esquerda força tanto para o outro extremo que seu ponteiro em algum momento se alinha com a direita. É por esse motivo que ambos se sentam sob a luz do mesmo abajur para ler os Protocolos dos Sábios de Sião, e assim, juntos, retroalimentam as teorias conspiratórias contra os judeus e o Estado de Israel, numa cena escatológica, digna de um frame do detestável filme “A centopeia humana”.
Ambos não sabem, ou não querem saber, que sionismo é no plural, como dito por Gherman neste vídeo. E das várias correntes da esquerda sionista, muitas delas são contra a permanência do conflito palestino-israelense. Condenam as ocupações. São a favor de dois Estados. Apoiam iniciativas de diálogo entre israelenses e palestinos.
É claro que a esquerda brasileira não quer saber disso. Não quer estudar, não quer ouvir, porque isso dá trabalho, e porque criticar Israel pelos motivos errados é ir a favor das correntezas do establishment antissemita. Criticam Israel pelos motivos errados – mas espere aí, existe o jeito certo de se criticar Israel? Sim, ele existe, e dá para fazer isso sem ser antissemita. Primeiro, é preciso vislumbrar a possibilidade de o Estado de Israel, nas mãos do atual governo de Naftali Bennett, não representar a todos os israelenses e árabes que vivem ali. A eleição ao cargo de primeiro-ministro é indireta, fragmentada, e de maioria simples. Bennett herdou um desgaste imenso vindo do governo do ex primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que atacou as instituições democráticas israelenses, ofendeu o direito internacional e cometeu graves violações dos direitos humanos, mas também não representava a todos os cidadãos do Estado judeu. Ou seja, assim como tantos outros regimes democráticos, mesmo que os mais frágeis, a sociedade israelense não existe enquanto consenso. O que se tem é uma diversidade de grupos étnicos, opiniões políticas e perfis ideológicos. Justamente por conta dessa diversidade, criticar quem está no governo é parte do jogo democrático, e é bom que seja assim.
O governo de Bibi foi péssimo, mas isso não anula a existência de Israel. O governo Bolsonaro é péssimo, mas isso não anula a existência do Brasil – e aqui não se trata de uma relativização do conflito, mas sim de uma forma de se mostrar que Israel não pode continuar como uma potência ocupante, e nem com os assentamentos ilegais. O Estado israelense deve sim ser responsabilizado por todos os erros que cometeu, e isso deve ser feito sem questionar a legitimidade de sua existência.
Da mesma forma, é possível elogiar Israel pelos motivos errados. A direita não israelense construiu uma Israel imaginária. Deram a Israel os contornos de uma excepcionalidade que não existe, e que não é saudável para nenhum Estado. Usam um verniz bíblico, apocalíptico, onde Israel é tido ou como palco para o retorno de um messias, ou como símbolo do conservadorismo, e somente por essa razão é que defendem o Estado de Israel, mesmo que em muitos casos reproduzam discursos islamofóbicos e antissemitas.
Desconstruir os mitos é uma tarefa difícil, porque essas histórias estão enraizadas no ego daqueles que buscam um inimigo em comum para chamar de seu, e o judeu imaginário é o bode expiatório perfeito. Sempre foi. De George Soros ao lobby judaico no congresso americano, o antissemitismo questiona o Estado-nação israelense como um país não legitimo. Questiona, em alguns casos, até se o holocausto existiu. Querem que os israelenses levantem acampamento e voltem para a diáspora, ou melhor ainda, que sequer existam. A esquerda antissemita cerceia o espaço do judeu na construção de uma sociedade progressista, e com essa jogada, a esquerda obriga os judeus a lutarem em vários fronts de batalha, porque o antissemitismo não vem mais apenas da direita. A esquerda está servindo, portanto, ao mesmo propósito.
Para aqueles que se alimentam do conflito, que lutam uma guerra por procuração e se beneficiam de um debate polarizado, eis que surge uma má notícia: existem palestinos e israelenses que acreditam na coexistência. São pessoas que sabem o real peso que uma guerra carrega, e eles estão dispostos a construir um caminho pela paz. O discurso de ódio da esquerda e da direita radical começará a perder força, porque não há mais espaço para guerra. O desequilíbrio de forças entre os dois lados será desfeito quando atingirmos a plena capacidade de diálogo e de respeito pela existência do outro, e cabe à esquerda e à direita democrática repensar sua forma de se posicionar dentro desse debate.