O momento era de tensão. Tisha B’Av, a data em que judeus religiosos lamentam a destruição do Templo de Jerusalém. O local? Provavelmente o espaço religioso mais explosivo do mundo, o Monte do Templo, onde se assentava o Templo de Jerusalém. As centenas de visitantes ameaçavam o status quo definido com o reino da Jordânia, possivelmente criando mais tensão, e possivelmente eclodindo a região em protestos e ondas de violência.
Ninguém se lembra mais desse dia. Visitantes entraram no espaço e conduziram cerimônias de acordo com o protocolo em que não podem ostentar símbolos religiosos ou rezas em voz alta. Alguns cantaram o Hatikva, o hino de Israel. O primeiro-ministro, Naftali Bennett, disse que era necessário manter a liberdade de culto no espaço. Logo após, seu ministério retificou a narrativa e esclareceu o respeito ao status quo com as partes relevantes – Washington e Jordânia. Na política doméstica, uma tênue negociação dentro de limites previamente estabelecidos. No cenário externo, multilateralismo e diálogo. A dinâmica não é acidental. É a extensão direta da arquitetura política de Yair Lapid.
O atual governo israelense é uma curiosa mistura de partidos de direita e de esquerda, que se mantêm unido pelo fato de que todos os integrantes entenderam que manter posições extremas não é possível. Cada lado da coalizão teve que ceder em pontos de sua agenda e moderar suas posições para ter poder. Isto cria uma situação de um primeiro-ministro enfraquecido, pois não é mais o voto de minerva, mas também de uma coalizão que efetivamente tem que negociar e não somente contar em uma maioria absoluta. Com 61 dos 120 parlamentares na coalizão, todo voto conta para que leis passem no Knesset (o parlamento). Aos leitores que não conhecem o sistema político de Israel: o espaço de representação política legislativa e executiva é o Knesset (Parlamento), formado de 120 parlamentares. O voto não é em candidatos, mas no partido. O número de cadeiras que o partido obtém é proporcional ao número de votos. O partido que consegue negociar a maioria das cadeiras na coalizão (60+1) forma um governo.
Uma coalizão frágil tem como pontos positivo o fato de que todo e qualquer voto precisa de coordenação clara entre as partes. Yair Lapid entendeu que apesar de ter o segundo partido mais votado do Knesset, não conseguiria formar uma coalizão caso não empreendesse uma negociação ampla entre direita e esquerda. Mesmo com os desafetos de Netanyahu como Gideon Saar, Avigdor Lieberman e Benny Gantz, todos ex-parceiros de coalizão do ex-primeiro-ministro (Lapid incluso, tendo sido Ministro de Finanças em 2013 sob Netanyahu), os números não fechariam. A aposta que ele lançou foi ambiciosa – trazer um partido considerado mais à direita do Likud de Netanyahu, um partido islâmico que até pouco tempo atrás era parte de uma legenda antissionista, dois partidos da direita, um de centro e dois da esquerda para trabalharem juntos. E conseguiu. Ao entender que sua força política encontraria limites dentro de um acordo de coalizão, concedeu a rotação do cargo de PM para Naftali Bennett cujo partido possui apenas seis cadeiras. Com isto, se mostrou aberto ao diálogo com a direita e consolidou sua abertura ao partido HaTikvah HaHadashah, de Gideon Saar. Saar é outro desafeto de Netanyahu que formou seu próprio partido. Concedeu ao Raam, o partido islâmico árabe, a força política para propor soluções antes não vistas para o setor árabe em Israel (sem contar que é o primeiro partido árabe oficialmente em uma coalizão). Trouxe partidos de esquerda, em crise por décadas devido à mudanças sociológicas na sociedade israelense, para postos importantes no governo. E na posição de primeiro-ministro alternativo, se tornou o ministro em um ministério tradicionalmente esvaziado: o Ministério das Relações Exteriores.
1.
O Ministério de Relações Exteriores já foi uma jóia do serviço público em Israel. Com Abba Eban, nas posições de ministro de relações exteriores e embaixador da ONU, encontrou seu ápice em erudição para justificar a legitimidade do sionismo e do Estado de Israel. O pai do atual presidente de Israel, Chaim Herzog, desafiou os países árabes na ONU quando foi o representante na organização. Porém, desde os anos 1990, a importância do Ministério decaiu. Com a centralidade do conflito árabe-israelense para diversos ministérios, as negociações de paz se deslocaram gradualmente para o gabinete do Primeiro Ministro, onde uma articulação entre ministérios seria mais equilibrada. Isto atingiu seu ápice no governo de Yitzhak Rabin, cuja rivalidade política com seu Ministro das Relações Exteriores Shimon Peres, fez com que o Ministério das Relações Exteriores ficasse no escuro em relação a pontos fundamentais das negociações de Oslo. Com Benjamin Netanyahu a tendência se acelerou, devido à sua política de diplomacia pessoal. O MRE passou a perder verbas, reduzir seus quadros e outras de suas funções foram retiradas para criar ministérios em troca de apoio político. Um exemplo é o Ministério de Assuntos Estratégicos, criado em 2006, que lidava basicamente com questões do movimento BDS, tradicionalmente era uma atribuição do corpo diplomático.
Até 2020 o Ministério das Relações Exteriores era então uma instituição desfalcada. Netanyahu tomou para si a política externa de Israel e sequer nomeou um chanceler por anos. No interregno em que Avigdor Lieberman foi ministro, houve uma tentativa de aumentar a presença comercial israelense na África, porém não foi estabelecida uma diretriz clara para suas operações. No ano de 2020, com a coalizão formada entre Netanyahu e Benny Gantz, atual Ministro da Defesa, Gabi Ashkenazi lançou seus planos para uma política externa renovada. Porém com o corona paralisando boa parte do mundo, grandes planos se tornaram inexequíveis. Além disso, a personalidade dominante de Netanyahu mais uma vez retirou do MRE funções fundamentais, como a negociação dos Acordos de Abraão (os acordos de paz com os Emirados Árabes e outros países da região). É sabido que o então Ministro das Relações Exterior sequer soube o que estava sendo acordado.
Lapid entrou no ministério com um caminho aberto. Uma de suas promessas de campanha foi de diminuir a quantidade de ministérios – que chegou a 31 no último governo. O Ministério de Assuntos Estratégicos foi rapidamente desmobilizado e suas funções voltaram para o MRE. Rapidamente estabeleceu contato com os representantes da União Europeia, maior parceiro comercial do país e a entidade que mais pressiona Israel na arena internacional para a solução do conflito palestino israelense.
Como a vasta maioria da população israelense que viveu durante a Segunda Intifada, Lapid entende que qualquer solução de dois Estados não seria uma solução mágica e vê com desconfiança àqueles que acreditam em tais ideias. Já deixou claro mais de uma vez que a maioria da culpa está do lado palestino e que a paz não seria uma utopia, porém um divórcio. Para os diplomatas europeus, deixou claro que apesar de suas crenças pessoais, o conflito não é uma linha reta. Explicou que acredita em acordos que permitam soluções humanitárias para o lado palestino, ao mesmo tempo trazendo benefícios para Israel. Com isto, se aproximou tanto dos planos já aventados pelo primeiro-ministro Naftali Bennett, de manter controle sobre os territórios e aumentar a capacidade econômica dos palestinos, sem alienar seus interlocutores europeus.
2.
Lapid entende que posições extremas, domesticamente e internacionalmente, tendem a se perder a partir do momento em que deslegitimam a existência de alternativas legítimas. Na sua visão, Netanyahu forçou o país a escolher entre força e segurança ao invés de democracia e uma versão extremada de essencialismo étnico ao invés de valores republicanos e respeito democrático às minorias. Para insuflar valores nacionalistas, se utilizou publicamente de declarações que colocavam a minoria árabe como quinta-coluna, como quando disse que “a esquerda está trazendo hordas de árabes para votarem”. A Suprema Corte se tornou o inimigo público número um, acusada diuturnamente de minar os “valores” do país. Apagando o passado liberal do seu partido, que foi o responsável por terminar com a autoridade militar que governou os cidadãos árabes até 1966, preferiu se unir com partidos que dizem de maneira clara que os cidadãos árabes estavam no país “por enquanto”.
Não que Lapid seja um homem de ideias de esquerda. A ideia de uma solução binacional lhe parece ridícula e periogosa. A transformação de Israel em um Estado sem conteúdo judaico uma tragédia. Lapid já deixou claro em diversas entrevistas que não acredita em uma visão de Israel em que apenas indivíduos constituem a nação de forma atomizada. Israel é um Estado judaico, em que os sentimentos comunitários, de família e religião informam parte da identidade nacional. Sua posição é de um liberalismo modesto, em que se reconhecem os benefícios de identidades múltiplas sem que isto se torne uma versão de política em que identidades locais são deslocadas e combatidas por um fetichismo de extremo igualitarismo. A democracia então seria a negociação de extensões da identidade: patriotismo, família e comunidade. O Estado deve refletir o desejo da maioria democrática – um Estado judaico, não binacional, não neutro – e ao mesmo tempo, conter mecanismos que garantam a liberdade de culto das minorias.
Deste nacionalismo inclusivo deriva sua política externa: Israel não é uma superpotência e não pode se dar ao luxo de antagonizar a todos. O equilíbrio entre muitos parceiros é melhor do que a dependência em poucos. O jogo da grande política, de entrar no campo das potências mundiais, não pode deixar de lado valores fundamentais do país. Por isso Lapid foi duramente contra a lei polonesa que criou uma versão do Holocausto em que os poloneses são simplesmente vítimas da ocupação nazista, apagando a colaboração de seus cidadãos no extermínio.
O centro político de Lapid é, portanto, transformativo. É de um pragmatismo radical em seu comprometimento de negociar diferentes identidades contraditórias. É uma tentativa de equilibrar versões diferentes de um Estado judaico e democrático sem criar polarizações extremas. Nas relações internacionais é o mesmo caminho – a possibilidade de manter a autonomia regional israelense, a relação especial com os Estados Unidos e relações cordiais com atores eventualmente discordantes – como a União Europeia. Obviamente isto não é uma fórmula de sucesso absoluta, pois a coalizão acaba de votar o orçamento após três anos de desarranjo nas contas públicas – a primeira das maiores provas de fogo para o novo governo. Mesmo com a ratificação de todos os membros do gabinete, o plano ainda deve passar por uma série de comitês até o voto final no Knesset – dependendo mais uma vez do consenso absoluto de todos os membros da coalizão. Caso um parlamentar sequer da coalizão se oponha, o governo automaticamente se dissolve. A oposição, liderada por Benjamin Netanyahu, não dá sinal de mínima possibilidade de cooperação e faz e fará tudo possível para derrubar o atual arranjo. Uma próxima guerra em Gaza pode colocar o governo em rota de conflito com a administração Biden. Quando o governo depende de todos os votos da coalizão, ele pode se perder a qualquer momento. Porém é uma tentativa de quebrar a polarização quase endêmica da sociedade israelense. É um experimento necessário que talvez possa trazer uma apaziguação de uma década de conflitos internos de uma sociedade extremamente fragmentada. A doutrina Lapid é a doutrina do pragmatismo.