TEL AVIV – Não consigo pensar em uma crônica de morte anunciada mais típica. Todos os anos, os festejos do feriado judaico de Lag Baomer em Israel terminam com um “quase deu ruim”. Alguém sempre diz: “Foi um milagre que nada aconteceu, desta vez”. Até que, este ano, a maior tragédia civil de Israel aconteceu, com 45 mortos e mais de 150 feridos. As pessoas foram pisoteadas em uma das ruelas do local, no fim do evento.
Mal comparando, esse festejo anual é tão importante para os mais religiosos quanto um show do Paul McCartney, do U2, da Lady Gaga ou da Beyoncé (ou do BTS, para os mais jovens) para os seculares.
Todos os anos, aparecem imagens de dezenas de milhares de peregrinos religiosos se aglomerando no Monte Meron na noite de Lag Baomer, formando um mar de cabeças e chapéus, por vezes pulando, por vezes dançando, por vezes se esforçando para entrar ou sair do evento, são divulgadas. Nos últimos tempos, vídeos e fotos da peregrinação religiosa ao túmulo de Rabbi Shimon Bar Yohai (espécie de ícone do Lag Baomer) aparecem nas redes sociais quase em tempo real.
Muito antes da pandemia da Covid-19, todos já ficavam chocados com a quantidade de pessoas no evento, até porque não parecia que havia muita organização, como no caso dos shows de música em Tel Aviv. Muita gente se perguntava como as autoridades deixavam isso acontecer. Mas, assim que acabava – em geral sem mortos e feridos -, todos se esqueciam.
Mas algum dia a “sorte” e o “milagre” acabariam. Foi o que aconteceu este ano.
Todos os olhos já haviam se voltado para o evento antes mesmo da tragédia e das mortes. Afinal, como pode ser que autoridades deram sinal verde para uma aglomeração de 100 mil pessoas em meio à pandemia de coronavírus? É verdade que Israel já vacinou 60% da população e que a maioria das restrições acabaram em meio a uma queda enorme de casos e mortes. Neste momento, em todo o país, só algumas centenas de pessoas estão com o vírus. Há pouquíssimas mortes e infecção. Só 100 pessoas estão hospitalizadas.
Mesmo assim, um evento com 100 mil pessoas aglomeradas, dançando e cantando juntas, sem máscaras ou qualquer distanciamento social? Autoridades sanitárias qualificaram o acontecimento de “infame” e “desgraça”. Isso antes das mortes deste Lag Baomer.
Mais além dos perigos da pandemia, o perigo da aglomeração no Monte Meron era conhecido. Não é a primeira vez que tragédias acontecem por lá desde o começo da tradição, há cerca de 200 anos. Há 110 anos já se falava de como o local não tem estrutura para esse festival religioso. Em 1911, um telhado desabou no local e 11 pessoas morreram. Dezenas ficaram feridas.
“Um terrível desastre aconteceu em Meron no momento do acender das fogueiras. Uma grade desabou. A comoção é muito grande”, noticiou o jornal Moriá em 19 de maio de 1911. “O rabino Rafael Dean acendeu a fogueira e toda a multidão entrou em erupção, cantando e dançando. Mas, de repente, e acima do telhado, houve um estrondo. Muitas das pessoas que estavam sobre ele caíram no chão e no pátio”.
“Houve uma confusão de pessoas, pedras e fragmentos de grades. Um homem gritava para ser resgatado. Todos procuravam e choravam por seus parentes e conhecidos”, descreveu o Jornal da Galileia.
Desde então, parece que ninguém aprendeu nada. Este ano, o jogo de empurra sobre quem é o responsável já começou. Alguns acusam a polícia de não ter evitado o evento – cancelando-o, como no ano passado, por causa da Covid – e de não ter organizado bem a entrada e saída das pessoas. Outros acusam os rabinos responsáveis pelos locais sagrados do país, que, mesmo com todo o perigo, levaram milhares de pessoas para o Monte Meron em comboios de ônibus.
Outros reclamam do Ministro das Religiões de Israel, Yaakov Avitan, que fez campanha para que a peregrinação este ano fosse grande para “compensar” o cancelamento do evento em 2020. E há os que afirmam que a culpa é das seitas ultrarreligiosos que administram Meron, que nunca fazem o que as autoridades mandam – não se organizam, não coordenam a peregrinação com a polícia, dão de ombros para instruções como distanciamento, etc. Algumas dessas seitas são antissionistas: odeiam o establishment israelense e fazem o que querem.
Por fim, tem os que culpam os próprios peregrinos, que vão aos montes – inclusive com crianças – para um evento em massa que todos sabem que pode ser perigoso (com ou sem coronavírus).
Para mim, é só misturar todos esses “suspeitos” para receber uma sopa de culpados. Mas, o condimento dessa sopa é uma só: a política. Em Israel, muitos políticos têm “medo” de enfrentar os ultraortodoxos e encaixá-los na mesma caixa do resto da população. Se ninguém pode se aglomerar (afinal, não houve um grande show em Tel Aviv desde março de 2020), por que pode haver uma peregrinação em massa para o Monte Meron? Por que, se qualquer evento secular precisa de mil burocracias e coordenação com a polícia, o evento religioso do Lag Baomer é um caos, sem um administrador, sem organização, sem coordenação?
Na raiz do problema, claro, é a falta de vontade política de contrariar lideranças desse público que, muitas vezes, ignoram solenemente as instruções, as regras e as leis do moderno Estado de Israel. Para que partido irá os votos dos mais religiosos caso certos políticos digam “não” a eles? Essa preocupação não deveria existir. É preciso ter coragem para contrariar a liderança ultraortodoxa se há perigo de vida, se um evento em massa pode terminar em tragédia, com 45 mortos que poderiam estar, agora, vivos.
Meu cinismo diz que ninguém vai aprender nada. Que no ano que vem haverá uma nova aglomeração perigosa no Monte Meron durante o Lag Baomer. Muitos participantes dirão que estará tudo apenas “nas mãos de Deus”.