Campanha do Governo Municipal de Timbaúba (PE)
A saída dos hebreus do Egito é celebrada numa das festas mais importantes do calendário judaico, inclusive para os judeus contemporâneos. Ela marca uma tomada de consciência nacional e a percepção da necessidade de tomar as rédeas do próprio destino. Há controvérsias se os hebreus foram mesmo escravos no Egito. Aparentemente, eles tinham uma relação de servidão, sendo responsáveis por algumas tarefas – talvez a construção de pirâmides –, que era mais ou menos opressiva conforme o Faraó do momento.
Como em toda relação, às vezes o momento é de partir. Acredito que esse seja a grande lição de Pessach. Um exame profundo de nossos laços, com subalternos e superiores, como servo e faraó, e de todos os mecanismos de servidão e opressão em que estejamos implicados. Como esposos, pais, chefes, filhos, empregados, eleitores e governantes, é o momento de se perguntar se ficamos ainda no Egito, construindo pirâmides, pois a alegria de ver obras tão, bem, faraônicas, supera a dor de nossas hérnias de disco. É o momento de se dar conta que a dor nas costas nem é o principal problema, mas sim o descaso com nossos esforços, que não pode ser minorado antes que a servidão se rompa. Ou assumir que, por alguma razão, temos medo ainda de enfrentar o deserto e vamos aceitando as humilhações de um faraó que muito provavelmente sem nós não é nada, caso contrário não nos oprimiria, até que estejamos fortes e solidários.
Também em situações de poder é hora de dar a permissão para sair, de deixar que filhos e alunos alcem seus vôos, de auxiliar um funcionário a buscar outra posição mais condizente com seu valor, de abrir mão da possibilidade de concorrer a um cargo quando se sabe que um jovem, com seu apoio, será melhor que você. É hora, enfim, de examinar cada uma de nossas relações humanas e verificar se elas têm o caráter da colaboração, ainda que com elementos de desigualdade, ou se ela se transformou num sufoco para todos. Estamos sendo bem governados? Estamos sendo bons patrões? Estamos permitindo que os jovens possam se afirmar como adultos? Numa sociedade complexa, poucos são aqueles que são só faraó ou só servo. A maioria de nós exerce as duas funções, em esferas distintas nas quais participam. O que não há dúvida é que o Pessach é a hora de soltar os grilhões, seja os que te prendem ao faraó, seja os que prendem teus servos a você.
Herança também desta festa é um símbolo que os judeus colocam no batente das portas de suas casas, a mezuzá, cuja função é indicar que ali mora um judeu. Na história de Pessach, esse sinal seria relevante pois Deus, irritado com a recusa do faraó de liberar seu povo, teria mandado 10 pragas para os egípcios, livrando dessas pragas quem tivesse feito um sinal na porta. Ao longo dos séculos, os judeus foram racionalizando suas práticas e valores, transformando em alegorias suas narrativas míticas. As histórias da Bíblia congelaram-se num texto sagrado inspirador, mas a sabedoria corrente, com seus métodos interpretativos específicos, é que passou a iluminar a vida cotidiana. Qual seria então o significado contemporâneo da mezuzá?
Lembrem que ser judeu tem pouco ou nada a ver com fé. O mistério do judeu ateu só é misterioso para quem não tem familiaridade com o judaísmo tradicional ou contemporâneo. O que os judeus têm em comum é um conjunto de práticas e valores que regem a vida em sociedade. O que se passa dentro da sua cabeça, caso você siga os mandamentos, é da sua conta. E haja mandamentos! Todos conhecem os top 10, endossados por outras religiões, mas a lista é bem extensa: a vida judaica é regulada de modo minucioso, complexo e atualizado a cada geração. Há regulações para o casamento, para emprestar dinheiro, para seguir as leis locais, para o trabalho, para as relações com os filhos, incluindo a obrigação de oferecer o colostro aos recém-nascidos ou de financiar sua educação, e assim por diante. Muitos conhecem algumas regulações alimentares, como a proibição de comer porco ou camarão, mas o fato é que a totalidade da vida social – não a psíquica – é governada por regras bastante exigentes. Mesmo os judeus seculares, que não se importam com um ou outro subconjunto de regras – por exemplo, que comem porco e camarão – tendem a aderir aos princípios mais gerais da religião.
A mezuzá indica não uma identidade abstrata, isolada e a priori, mas sim a aderência ao conjunto de práticas e valores judaicos estabelecido através dos séculos, cada qual a seu modo. Um judeu comunista verá aquele tubo pregado ao batente como homenagem aos seus antepassados do Bund, organização socialista do Leste Europeu, que buscavam uma vida melhor para si e mais justa para todos. Um empresário verá no mesmo objeto a lembrança de que deve oferecer tsedaká, compensações, como seus pais e avós fizeram antes dele, com grandes contribuições à comunidade judaica e ao bem estar comum. Intelectuais vão lembrar de suas obrigações para com a busca do conhecimento e com o compromisso com a verdade, como os grandes luminares do povo judeu, mesmo correndo o risco de excomunhão ou perseguição. E claro que haverá os bolsonaristas judeus, como em qualquer comunidade, e como eles encaram a mezuzá da porta de casa a cada dia é um mistério que, egoisticamente, prefiro não desvendar.
De qualquer modo, a mezuzá é mais um dos vários elementos de reafirmação dos laços de cada judeu com seu povo e princípios, como também o são a circuncisão, o bar mitzva ou os arrependimentos de Yom Kipur, feitos coletivamente. Pregar o objeto ali na sua porta, à vista de todos, é uma assinatura num longo e muitas vezes pesado contrato firmado individualmente (ou familiarmente) com a coletividade. E que significado a mezuzá tem hoje, em 2021, em meio a uma catástrofe humanitária inaudita no Brasil, país que sempre preferiu a paz à guerra, a confraternização ao poder?
Entre essa infinidade de regras que ser judeu impõe, há um conjunto de regras de cuidados com o corpo muito grande, como não poderia deixar de ser. Quando lavar as mãos, quando transar, que alimentos são puros ou não, como devem ser tratadas as feridas, quando se deve evitar contato com um doente, tudo isso é detalhado na Bíblia, que foi escrita, é preciso esclarecer, depois da saída do Egito. Esses cuidados todos tinham o objetivo de preservar a vida e a saúde, e alguns deles se estendiam aos servos e até aos animais, como por exemplo a proibição de trabalhar em dia de descanso, algo que as legislações trabalhistas conquistaram recentemente e que a ciência hoje comprova que é uma necessidade física e mental para a saúde plena. No passado, devido a essas precauções todas, os judeus foram menos afetados que as populações em geral por pestes transmissíveis, o que lhes causou uma porção de dissabores. Há estudos mostrando taxas de mortalidade infantil mais baixa devido à regulamentação dos cuidados que mães e pais deveriam dar aos filhos, e inclusive aos cuidados que pais e a sociedade deveriam oferecer às grávidas e lactantes, respeitando seu resguardo.
O significado da mezuzá é, em 2021, o mesmo que sempre foi: aderência aos princípios judaicos, e em particular às práticas de proteção à vida, parte central daqueles princípios desde a errância no deserto. Honrar a mezuzá em nossas casas não é se diferenciar do vizinho que não tem, mas se ajuntar ao vizinho que também usa máscara, que também mantém o distanciamento social, que também fica em casa quando possível. Também é aplicar esses mesmos valores de proteção à vida às pessoas sobre quem temos algum poder, pagando nossos funcionários para ficar em casa ou protegendo ao máximo suas vidas caso exerçam atividades essenciais. Usar nossa habilidade comunicativa para explicar a quem não entendeu a importância dos mecanismos de prevenção também é nosso dever judaico, aliando-nos àqueles que, seguindo outros valores e princípios, agem também nesse sentido. Opor-se a quem incita à desobediência a essas práticas milenares de respeito à vida, tomando os cuidados necessários nessa oposição, dado o grau inaudito de esgarçamento do tecido social atual, também é nossa mitzva, nosso necessário serviço à coletividade.
As duas coisas estão ligadas. O respeito à vida como valor supremo e a busca da autonomia são faces da mesma moeda. Pessach nos manda dar no pé de situações que colocam nossa vida, nossa saúde e nossa dignidade em jogo. O respeito à vida – mesmo o respeito à própria vida, o amor-próprio – é uma pré-condição para que respiremos fundo e digamos: deu! Enough is enough. Se é questão de adeus, até logo. É compreensível que governantes autoritários queiram minar esse instinto humano pela vida, instinto reforçado institucionalmente e espiritualmente pelo judaísmo e por várias, talvez todas, as religiões. Pois sem amor próprio, sem o respeito à vida, não há como romper o laço aprisionante com quem nos oprime. A máscara, como a mezuzá, não é um modo de nos diferenciarmos do outro, de marcarmos uma posição política ou de classe ou de status. Ele é um modo de escolher a vida, de nos fortalecermos num ambiente caótico para poder tomar nosso próprio rumo, junto com nossos semelhantes. Para sairmos, simbolicamente, do Egito, país que parecia acolhedor e com o novo faraó tornou-se inabitável.
Por isso, cada judeu deve olhar para sua mezuzá, quando sai de sua casa e quando volta a ela, como sinal de que deve seguir todo o conjunto de obrigações em prol da sua vida e de seus semelhantes, se aliando a cada pessoa que, por sua própria trajetória, chegou às mesmas conclusões: que nossa vida vale a pena, e que assumindo isso plenamente vamos estar aptos para nos soltar dos grilhões pesados que nos oprimem. E cada pessoa deve olhar para sua máscara do mesmo modo: sem ver nela uma diferença com o outro que não usa, mas sim como sinal de sua opção pela vida, como convite ao semelhante que se agregue a ele numa jornada que será dura para todos nós, brasileiros, de libertação, de errância e de busca.