TEL AVIV – A histórica decisão do Supremo Tribunal de Justiça de Israel, de ordenar o reconhecimento de conversões ao judaísmo feitas por rabinos conservadores e reformistas – não só por ortodoxos –, é mais do que uma questão religiosa. A meu ver, é um tema político, um microcosmo do grande debate que acontece no mundo, neste começo do século XXI, entre nacionalismo e globalismo. É o maior debate atual da Humanidade.
Antes de explicar porque acho isso, dou exemplos do que cada lado – os favoráveis e os não favoráveis – acham. Acompanhei uma discussão sobre o tema realizada pelo Jerusalem Press Club com dois convidados, um bem contra e outra bem a favor das novas conversões, consideradas mais “light” e menos estritas, para quem quer se tornar judeu. Isso se reflete em quem pode se tornar automaticamente um cidadão de Israel.
Em termos práticos, a decisão infere que quem se converter em Israel pelo judaísmo reformista ou conservador, poderá se registrar como judeu no Ministério do Interior e receber automaticamente a cidadania sob a Lei do Retorno, que dá a todos os judeus do mundo o direito de se tornar cidadão do Estado de Israel. Esse não era o caso, antes. Só valia para quem se convertesse pelo judaísmo ortodoxo, muito mais rígido e cheio de regras. E que leva muito mais tempo e costuma não aceitar “jeitinhos”.
A rabina Galia Sadan, que preside a Corte Rabínica do Movimento Reformista de Israel, comemorou a decisão: “Este é o grande salto para o reconhecimento da legitimidade do movimento reformista em Israel. Esta é uma luta de décadas”.
“O que o movimento reformista está tentando alcançar é o reconhecimento do Estado de Israel de que há várias formas de celebrar nossa vida judaica”, disse a rabina. “A diversidade da Humanidade, em geral, e a diversidade das opções judaicas, são algo que já existe. As pessoas celebram sua identidade judaica e sua vida judaica de muitas maneiras diferentes. O Estado de Israel precisa ser tão pluralista quanto sua população”.
“Este recurso estava pendente há 15 anos”, disse a rabina Sadan. “O tribunal deu ao governo várias oportunidades para resolver esse problema com a legislação. O problema é que vários governos não avançaram nessa discussão, tornando normal o status quo. Nos últimos dois anos, isso ficou ainda mais empacado porque os governos foram substituídos repetidamente. Por fim, então, a Suprema Corte perdeu a paciência e declarou que não havia mais espaço para esperar. O assunto foi resolvido pelo tribunal porque o governo e o Knesset (o Parlamento) não estão dispostos a resolvê-lo”.
Obviamente, há muitos que não concordam com a decisão do Supremo e condenam a ideia de abrir as conversões em Israel para outros ramos do judaísmo que não a ortodoxia. É o caso do advogado Simcha Rothman, candidato às próximas eleições para o Knesset (23 de março) pelo partido “Sionismo Religioso”, do ultradireitista Bezalel Smotrich, e crítico ferrenho da Suprema Corte (que para ele, é ativista de esquerda). Para ele, a decisão da corte vai abrir Israel para “qualquer um” e, na prática, “cancela a Lei do Retorno”.
“Isso impedirá que Israel tenha qualquer política de imigração e é muito perigoso. Não temos como prever as consequências”, disse Rothman. “Isso basicamente cancelará a Lei do Retorno e, portanto, essa decisão precisa ser revogada pelo Legislativo. O Supremo é um tribunal superativista, que se permite definir a política de imigração e de segurança e quase qualquer outra questão política”.
Para o advogado, agora qualquer pessoa poderá vir para Israel, ter “aula de judaísmo por zoom por algumas horas” (sic) e conseguir a cidadania: “A forma de conversão dos reformistas não exige tanto. As pessoas vão poder pular para a frente da fila para se tornar um cidadão israelense, em vez de se naturalizar para obter a cidadania. Significa que qualquer trabalhador estrangeiro ou imigrante ilegal pode fazer um curso de zoom de algumas horas e se tornar um judeu reformista autodeclarado e obter a cidadania com todos os benefícios”.
Simcha Rothman não esconde que, para ele, Israel tem que ter uma lei religiosa que mantenha Israel “para o Povo Judeu”: “Queremos ser a pátria do Povo Judeu e precisamos ter nossa política de imigração, como muitos outros países ao redor do mundo, moldada para esse fim”.
Como alguém que cresceu em uma família pouco ou quase nada religiosa, frequentando uma sinagoga conservadora no Rio, comemoro a decisão por saber que judeus conservadores e reformistas são tão judeus quanto os ortodoxos, merecem ser reconhecidos como tais – se assim quiserem – e continuar a vivenciar sua religião da maneira que quiserem. Ninguém pode dizer a mim que eu não sou judia porque não pratico os 613 mandamentos da Torá, pego o elevador no sábado ou compro, de vez em quando, presunto na delicatessen russa mais próxima. Minha identidade é só minha e tenho direito a tê-la. É uma identidade baseada mais na História, na cultura e na língua do que nos preceitos religiosos.
Entendo quem suspeita que o controle das conversões pelos ortodoxos tem um quê de preconceito e de tentativa de manter uma “pureza” nacional (o que soa muito mal). Por outro lado, entendo a preocupação de quem acredita que imigrantes ilegais poderão, a partir de agora, se converter com mais facilidade porque, sendo judeus, terão o direito de se tornar cidadãos imediatos pela “Lei do Retorno”.
A questão é que o “judaísmo”, em Israel, é visto como nacionalidade, não como religião. É como ser “brasileiro”. E, para ser brasileiro, há regras como nascer no país ou ser filho de brasileiros. Imigrantes precisam passar por um processo de naturalização mais complicado e duradouro do que a minha filha, que nasceu em Israel mas que, por ser minha filha, ganhou nacionalidade brasileira imediatamente. Ninguém diz que o Brasil quer manter uma “pureza” nacional por causa disso. Esses conceitos de nacionalidade são complicados e variam de país em país.
Comemoro a decisão do Supremo por tudo o que eu acredito, pela minha crença na liberdade de identidade e em conceitos mais amplos de humanismo e direitos humanos. Mas acho que esse não é o final da história. Os ortodoxos vão reclamar, não vão aceitar, vai boicotar. Isso porque têm uma crença real de que Israel deve ser o país só de quem tem a “nacionalidade judaica” Para eles, a nacionalidade é mais importante que os direitos humanos. Eles consideram o globalismo algo perigoso, que coloca em risco a própria ideia de nação.
Trata-se da maior discussão da atualidade: nacionalismo X globalismo. Um tema complicado que, em Israel, coloca o Supremo de um lado e o stablishment da ortodoxia religiosa em outro.