TEL AVIV – Atenção para a criação de um tipo inédito de diplomacia: a da vacina. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu quer inaugurar essa nova modalidade depois de Israel ter se destacado mundialmente como líder em campanha de imunização contra a Covid-19. Sua ideia é agradar países aliados com envios de milhares de ampolas.
Com 60% da população acima dos 16 anos já vacinada com as duas doses da vacina da Pfizer/BioNTech, Israel tem, por incrível que pareça, vacinas sobrando. E se as ampolas estão em alta demanda pelo mundo, por que não usar o excedente para objetivos diplomáticos? Na quinta-feira (25 de fevereiro), ele esbarrou no procurador-geral, Avihai Mandelblit, que decidiu pedir um tempo para checar se isso não contraria alguma lei. Os envios foram congelados (menos o que já foi para Honduras), mas podem ser retomados se Mandelblit der sinal verde.
A estratégia de Netanyahu segue uma lógica. Se você tem muito de algo que outros querem, seu poder aumenta. Não é preciso ensinar essa noção básica ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, líder velho de guerra, que utiliza todas as ferramentas políticas e diplomáticas a seu favor. Pode-se dizer tudo de Netanyahu: que paira sobre ele acusações de corrupção, está há 12 anos e quer continuar, manipula eleitores e aliados, vilipendia inimigos, só pensa em se safar da cadeia e, para isso, tenta minar o poder judiciário (e a democracia).
Mas todos concordam: ele é um mestre em aproveitar oportunidades. Desde que o sucesso israelense com as vacinas começou a fazer manchetes pelo mundo, os telefones do Ministério das Relações Exteriores, de embaixadas de Israel, do gabinete do primeiro-ministro e do presidente passaram a receber chamadas de congratulações e… de pedidos. “Não tem uma sobrinha de vacinas para nos mandar?”; “Não dá para vocês enviarem alguns milhares de imunizantes para nós?”; “O que vocês querem em troca das ampolas?”.
O mundo todo está na fila pelas vacinas, mas Israel, com um misto de perseverança, antecipação e disposição para pagar mais caro, já assegurou todas as que precisa. Está, inclusive, recebendo mais doses da farmacêutica Moderna para guardar para uma segunda rodada de imunizações, que deve começar em seis meses – afinal, a validade das vacinas contra a Covid-19 não parece passar disso. Muitos especialistas acham que o mundo inteiro terá que se vacinar repetidamente, assim como faz anualmente com a gripe.
Mas Netanyahu percebeu que poderia usar algumas dezenas de milhares de doses como “presentes de boa-vontade” para agradar países aliados ou, quem sabe, converter os que ainda não são aliados. Quem sabe os aliados, diante do agrado, aceitem apoiar Israel em fóruns internacionais? Ou pensem em transferir suas embaixadas para Jerusalém?
Não acredito que apenas algumas milhares de doses sejam capazes de mudar substancialmente políticas externas ou que Netanyahu tenha condicionado enviá-las a câmbios dramáticos no apoio a Israel. Mas certamente são uma “prova de boa vontade” que, num trabalho de formiguinha, podem abrir as portas para discussões diplomáticas.
O próprio governo admitiu, em 23 de fevereiro, que está “exportando” o excedente: “À luz do sucesso da campanha de vacinação em Israel e por ser o líder global na vacinação de populações, Israel recebeu muitos pedidos de países para assistência no fornecimento de vacinas”, disse um comunicado do gabinete do primeiro-ministro.
“Israel não está produzindo vacinas (…) No entanto, no último mês, uma quantidade limitada de vacinas não utilizadas foi acumulada. Decidiu-se ajudar as equipes médicas da Autoridade Palestina, além de vários dos países que contataram Israel, com uma quantidade simbólica de vacinas”, terminou a nota.
Não vou entrar aqui na discussão quanto à vacinação de palestinos (já falei sobre isso em outras colunas e deixei claro que a AP não havia pedido e nem queria ajuda alguma de Israel). Só atualizo que a AP finalmente aceitou alguma assistência e pediu para que Israel vacine os cerca de 100 mil palestinos da Cisjordânia que trabalham diariamente no país.
Segundo o canal de TV Kan 11, Netanyahu planejava enviar a pelo menos 19 países algumas vacinas. A quantidade seria realmente simbólica: algo como 1 mil a 5 mil doses para cada país. Entre os agraciados: Chipre, Mauritânia, Hungria, Honduras, Guatemala, República Tcheca, Maldivas, San Marino, Etiópia, Chade, Quênia, Uganda e Guiné.
A Itália também estaria na lista. Isso sem contar a Síria, que também teria recebido doses em troca de uma cidadã israelense que cruzou a fronteira com o país e foi capturada por tropas sírias. Quer dizer: até em moeda para pagamento de resgate as vacinas se transformaram.
Netanyahu garantiu que as cerca de 100 mil doses – compradas com impostos dos israelenses – não seriam enviadas às custas dos cidadãos: “São números simbólicos que damos aos vários países”. E admitiu que a decisão foi dele: “Eu decidi e acho que foi acertado”.
Mas muita gente chiou, até porque Netanyahu não consultou ninguém, muito menos seu primeiro-ministro alternativo, Benny Gantz (que concorre contra ele nas eleições de 23 de março). Gantz, que também é ministro da Defesa, e o ministro das Relações Exteriores, Gabi Ashkenazi, só souberam disso tudo depois que as remessas já tinham sido acertadas. No caso do chanceler, só quando um avião de Honduras aterrissou em Israel para buscar 5 mil doses.
No caso de Gantz, ele só soube de tudo isso pela imprensa. Ficou enfurecido e exigiu que as vacinas parassem de ser enviadas até que tudo fosse discutido formalmente com o gabinete de segurança. “Esta não é a primeira vez que decisões políticas e de segurança significativas são tomadas sem o conhecimento de elementos relevantes no Estado de Israel, potencialmente prejudicando a segurança do Estado”, escreveu Gantz em carta ao procurador-geral, Avihai Mandelblit, que acabou suspendendo tudo para verificar a legalidade.
O que Gantz não entende – em sua conhecida ingenuidade política – é que essa lamúria só fortalece Netanyahu. O premiê corrobora sua força internacional ao prometer doses que certamente irão parar nos braços de presidentes e primeiros-ministros pelo mundo e, ao mesmo tempo, humilha Gantz, que parece mais um filho reclamando que o pai o matriculou em uma aula de natação que ele não queria.
Se der certo, a Diplomacia da Vacina será uma situação de “win-win” para Netanyahu, tanto internacionalmente quanto às vésperas de mais uma eleição – a 4a em dois anos.