Entrevista com historiadora Bianca Bastos e a antropóloga Thayane Fernandes

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A historiadora carioca Bianca Bastos e a antropóloga pernambucana Thayane Fernandes, pesquisadoras do IBI no Campus.

Nos últimos meses, uma das coisas que mais tem nos mobilizado é a possibilidade de conhecer pessoas com histórias de vida e percepções sobre o mundo por vezes muito diferentes das nossas, mas que, ainda assim (e talvez por isso mesmo!), encontram sentido naquilo que fazemos. Intelectuais de primeiro nível que aproximaram-se do campo dos estudos judaicos e do sionismo. Nestes diálogos, também nos transformamos.

Bianca Bastos e a Thayane Fernandes são duas dessas pessoas. As duas acompanham o IBI há bastante tempo, viajaram conosco a Israel e aos territórios palestinos e são autoras de capítulos do livro “Conflitos e religiosidades: Israel, sionismo e estudos judaicos no Brasil”, lançado ontem.

A Bianca é mestranda em História Social da Cultura na PUC-RJ e colaboradora do IBI e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ (NIEJ). Já a Thayane é doutoranda e mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco, integrante do DEVIR/UFPE, do NIEJ/UFRJ e do Grupo de Estudos Afrocentrados, interessando-se pelas interfaces da Antropologia com religião, raça, gênero, arte e subjetividades.

Qual o tema da pesquisa de vocês? Poderiam contar brevemente o que estão estudando?

Bianca Bastos: Meu tema é no campo da história. Procuro desenvolver uma análise sobre os usos do judaísmo, das simbologias judaicas pelos neopentecostais no Brasil, e a mobilização de tais simbologias na disputa de memória e na construção de identidade nacional. Essa análise envolve a abordagem e compreensão das teologias, leituras bíblicas, história social, memória e patrimônio, além da história política e do tempo presente. O neopentecostalismo aqui é visto por uma perspectiva política, como uma Nova Direita, cristã e conservadora, que se alinha a um judaísmo específico, no intuito de pensar a referência de horizonte de expectativas não no futuro, mas no passado, no resgate de uma memória identitária religiosa. O alinhamento entre as comunidades judaica e neopentecostal se dá conforme a ideia de Israel imaginário, que é habitado por um judeu imaginário, ou seja, uma Israel e um judeu bíblicos, resgatando uma “raiz” em comum. Essa modulação entre passado e futuro cristão atribui ao Holocausto uma perspectiva sobre o cristianismo, enquanto que, na contrapartida, atribui à escravidão uma perspectiva sobre os inimigos do cristianismo, quadro fundamental para a compreensão do desenvolvimento do patrimônio e da história do Brasil. Essa configuração trata do debate da brasilidade sob a noção do passado e do futuro, em um país que é lido como sem passado, sem memória e do futuro, a partir de uma atribuição de sentido a uma identidade judaica, que é incorporada na perspectiva patrimonialista, utilizada para superar a noção de que não há passado no Brasil. Aqui o passado brasileiro é o passado de Israel bíblico. E em detrimento desse passado, há um movimento de apagamento do passado da escravidão, e o que passa a dar sentido a essa lógica de passado cristão é o Holocausto. A democracia racial é construída aqui não fundamentada na escravidão, seguindo a visão freyriana, mas a partir do pertencimento a um passado ideal, que é o passado bíblico. E a utilização do patrimônio judaico por esse neopentecostal, da Nova Direita, é mobilizado por um uso político de um passado ideal, do qual o judaísmo faz parte e o judeu não.

Thayane Fernandes: Eu tenho pesquisado sobre a incorporação de símbolos e rituais judaicos por parte dos pentecostais. Durante o mestrado (concluído em 2019) fiz trabalho de campo com duração de 16 meses (entre 2017 e 2018) com evangélicos de uma igreja pentecostal na cidade do Recife, onde eu resido. Investiguei a relação estabelecida entre os fiéis, líderes carismáticos e assimilação do que entendem como cultura judaica, Israel e judeu – todos eles vinculados a um imaginário, que tem origem na interpretação do Antigo Testamento da Biblia sagrada. Os resultados da minha pesquisa apontaram para alguns pilares que sustentam a aproximação do pentecostalismo com o que entendem como judaísmo. Para tentar compreender, ainda que parcialmente, este “fenômeno”, criei o conceito de “judaico-pentecostalismo”.

Porque começaram a pesquisar esse assunto?

Bianca Bastos: Meu interesse inicial era começar uma pesquisa, ainda na graduação, que abordasse algo distante da minha realidade, que me provocasse um incômodo, e que ao mesmo tempo me motivasse. Então passei a integrar o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ), pois lá encontrei esses debates que me tiraram da zona de conforto. Durante esse processo, surgiu, a partir de um episódio específico, a iniciativa de mapearmos o discurso de grupos sociais brasileiros sobre a questão palestino-israelense. Nessa pesquisa, propus me dedicar a investigar o grupo religioso cristão, essa Nova Direita que faz usos de simbologias judaicas, a fim de compreender como se dava esse processo. A partir de então, desde 2017, o tema foi crescendo, ganhando novas hipóteses, inquietações e abordagens, até se tornar meu tema de dissertação de mestrado.

Thayane Fernandes: Comecei a me envolver com o tema na graduação em Ciências Sociais em 2013, quando investiguei a mesma igreja pentecostal pesquisada no mestrado, sob outro viés. Os resultados da monografia apontavam para o estudo do pentecostalismo em sua interface com o judaísmo, religião na qual sabia pouco, ou quase nada. Seria impossível dar continuidade a pesquisa no mestrado, sem aprender mais sobre os judaísmos, (sim, no plural) para compreender como o campo pesquisado se articulava.

De que forma o Instituto Brasil-Israel tem apoiado o desenvolvimento do trabalho?

Bianca Bastos: O IBI me apoiou muito nesse processo, seja com oferta de cursos de extensão, com a oportunidade de escrever textos que foram avaliados por referências no tema, ou proporcionando uma rede de contatos incrível e essencial nesse processo de estudos e desenvolvimento de uma investigação. Todas as pessoas com quem conversei mediadas pelo IBI até hoje contribuíram grandemente para o desenvolvimento do tema. O momento mais importante, eu destaco como sendo o da viagem aos territórios palestinos e israelenses, após um curso de extensão, ofertado pelo próprio IBI. A cada dia que passava e que a programação avançava, eu percebia que um dia visitando alguns pontos e cidades me fizeram compreender questões levantadas por semestres de aulas, e não me fizeram compreender no sentido de que entendo tudo da questão e da identidade desses dois povos, mas me tiraram muitas dúvidas, enriqueceram ainda mais as informações que possuía e tornaram os questionamentos mais orgânicos, mais envolventes.  

Thayane Fernandes: Conheci o IBI através de um evento organizado em Israel, porém, já utilizava os trabalhos do Michel Gherman para consubstanciar meus textos. Foi através do projeto IBI no Campus que pude aprender com pesquisadoras e pesquisadores que trabalham tanto com o conflito Israel Palestina, quanto com temas como judaísmo, sionismo e diáspora, de forma didática. Advinda dos estudos da religião na Antropologia, me deparei com um laboratório composto por pessoas das diversas áreas das ciências humanas, o que tem me proporcionado aprender e ver sob óticas distintas os mesmos fenômenos. Os insights que tenho durante os encontros fazem minha pesquisa (agora durante a fase inicial de minha tese de doutorado) caminhar. Durante muito tempo me senti isolada em pesquisar esse tema na Antropologia, sobretudo no Nordeste, que sofre com a geopolítica do conhecimento. A mim, particularmente, interessa estar em ambientes nos quais o conhecimento não é hierarquizado, como é comum em ambientes acadêmicos. No IBI, todas, todos e todes têm liberdade e possibilidade de contribuir nos debates.

Vocês estiveram recentemente em Israel e nos territórios palestinos. Podem contar um pouco sobre a importância dessa viagem em suas vidas e em seus estudos? Quais as principais descobertas e aprendizados?

Bianca Bastos: Bem, retomando um pouco o que disse, a viagem a esses territórios me pareceu uma grande descoberta, pois estava vendo diante dos meus olhos muitas questões e tramas que até então havia apenas lido. E no momento da viagem, eu estava pesquisando e escrevendo a monografia da graduação que abordava o KKL (Keren Kayemet LeIsrael – Fundo Nacional Judaico), que é um fundo muito importante na história desses dois povos, principalmente por tratar da compra de territórios. Ali muitas coisas passaram a fazer mais sentido, pois estava de fato conhecendo um Kibutz, vendo a extensão territorial e conhecendo muitas cidades e percebendo disputas que tinha acessado apenas na literatura e na historiografia. Essa experiência foi muito marcante, e até hoje me desperta o interesse em estudar mais o fundo num futuro próximo, pois ele envolve também a construção de identidade nacional, que é um pouco do que estudo agora no caso do Brasil.

Thayane Fernandes: A viagem para Israel e Palestina foi inesperada para mim. Fui convidada para participar de uma conferência organizada pelo IBI e a Universidade de Haifa, como palestrante. A conferência foi muito importante para o meu trabalho, sobretudo porque inseriu minha pesquisa no panorama dos poucos trabalhos sobre a temática no Brasil até então. Pude dialogar com autores internacionais os quais utilizei em meu referencial teórico da dissertação. Durante a minha estadia consegui participar de algumas atividades em lugares que jamais imaginei pisar. Já escrevi sobre isso anteriormente num relato que publiquei em meus perfis do Instagram e Facebook pessoais.  Foi muito impactante para mim, poderia passar horas falando sobre, ou esse texto não teria fim. De tudo que vi e vivi, gostaria de pontuar alguns acontecimentos: Conheci uma mesquita e conversei com um dos líderes na linda cidade litorânea de Haifa, junto com o psicanalista Cristian Dunker, e, não posso esquecer de mencionar o guia, Kike Rosenburt. Fomos até a cidade Siderot, repleta de bunkers (proteções antimisseis) e fragmentos de misseis expostos nas ruas. Era uma cidade silenciosa, o silêncio que, para mim, gritava medo. Conheci também o Kibutz Zikim, próximo a faixa de Gaza, em Israel. Esse foi o local que mais me chocou. Difícil acreditar nos que os meus olhos viam: o Mediterrâneo ao fundo, a luz da tarde, e o relato de um dos moradores. A vida no Kibutz não é fácil, sobretudo por sofrerem constantemente com os ataques que vem de Gaza em direção a Israel e vice-versa. O morador, educador das crianças que lá residem, nos relatou como a cultura do medo da morte tem impactado a vida de adultos e crianças. E como a paz é algo ainda distante. De tudo, duas coisas ficaram singularmente marcadas: o meu exercício de alteridade para compreender como as pessoas podem ser felizes vivendo em meio a guerra, e porquê elas continuam insistindo em fazer de lar um lugar em que mal se pode caminhar sem imaginar que a qualquer momento um míssil pode explodir tudo. A segunda reflexão: por que países explorados e povos subalternizados não têm o direito de existir? Incluo, também, o Brasil.

A grande maioria dos pesquisadores da área dos estudos judaicos são brancos. De que forma o fato de vocês serem mulheres negras impacta na percepção que têm dos assuntos abordados?

Bianca Bastos: Essa pergunta me fez recordar um momento em que eu e uma colega do NIEJ estivemos participando de uma conversa com a presença de alguns professores que são referência nos estudos acadêmicos no Brasil (mais uma vez o IBI proporcionando boas experiências), e quando fomos nos apresentar, notamos esse incômodo no olhar das pessoas, de quererem entender porque estudamos essas temáticas, e lembramos que um estudante que pesquisa a Grécia ou a Roma da antiguidade não é contestado sobre suas raízes ou nacionalidade, nem um pesquisador que se debruça sobre os estudos europeus, norte americanos e daí por diante. Então essa pergunta nos incomodava, por parecer que os estudos judaicos, do conflito ou do Oriente Médio passassem por uma lógica de “lugar de fala” intocável, enquanto a  nossa ideia era colocar em prática o que acreditamos que a academia seja, um lugar de trânsito dos lugares de fala, já que estamos promovendo, ou buscando promover, pesquisas, debates e reflexões sobre sociedades e suas implicações. Permanecer pesquisando, apesar desses questionamentos, é como uma forma de resistência acadêmica, de promoção de reflexões, de trocas culturais e de tentar compreender o outro. Eu acho que essas barreiras e delimitações hierarquizam e cristalizam demais assuntos que têm grande fôlego.

Thayane Fernandes: As universidades públicas brasileiras são espaços que excluem pessoas não brancas. As ciências humanas e, para falar sobre minha área de formação, a antropologia não fica atrás. Espera-se que as pessoas negras, em geral, dediquem-se a pesquisar sobre raça, como se nós não fôssemos capazes ou não soubéssemos investigar outras temáticas. Está aí a confusão e a maior expressão do racismo. Quando se é mulher, tudo piora. Nos subestimam, desacreditam e, em boa parte das vezes, nos excluem. Eu costumo afirmar que não é um carma para mim ser uma mulher negra, principalmente ao trabalhar com religião e estudos judaicos. Ao meu ver, nós somos capazes de nos integrar aos mais diversos temas, tendo em vista os desafios que estamos habituadas a lidar cotidianamente. Nosso trabalho nunca é nem pode ser vazio, por que ele é parte de nós, da nossa bandeira, da nossa vida. Dessa forma, nossas perspectivas são mais do que agregadoras, elas refletem o quão múltiplas nós somos dentro de nossas produções individuais.

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