TEL AVIV – Como colocar o gênio de volta na garrafa? Como colocar a pasta de dente de volta no tubo? Como devolver os ratos que defendem golpes de Estado, mentiras amalucadas, preconceitos antigos e teorias conspiratórias ao porão de onde nunca deveriam ter saído? A resposta é: não sei se é possível. Nós assistimos, nos últimos cinco anos, a gênese do “trumpismo”, um movimento antidemocrático com muitos pontos similares ao fascismo e ao totalitarismo. Presenciamos o passo a passo, o tutorial, de como criar uma seita política para transformar a realidade do século 21 em uma distopia digna de seriado da Netflix.
O que isso tudo tem a ver com Israel? Vou explicar em seguida, mas um spoiler é a foto acima, que mostra um dos terroristas americanos que invadiram o Capitólio nesta quarta-feira (7 de janeiro). A barba longa e o jeitão de ermitão do sujeito – que parece ter sido tirado de um filme de horror – se completa com uma camiseta que diz “Campo Auschwitz: trabalho traz liberdade”. A alusão é ao slogan nazista “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”, em alemão), que aparecia na entrada de campos de extermínio nazistas.
Desde que o milionário e apresentador de TV Donald Trump decidiu concorrer à presidência americana, há cinco anos, ele trabalhou lentamente, mas intensamente, na criação de narrativas mentirosas e bolhas de fake news para influenciar um exército de “minions”. Seguiu à risca o lema “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, do braço direito de Adolf Hitler, Joseph Goebbels. Já estava claro o que iria acontecer: algo como uma tentativa de golpe ou incitação de guerra civil, como se viu em Washington.
“O presidente e seu bando de capangas sediciosos, além do ecossistema de mídia da direita, alimentaram sua base de coelhos com uma dieta constante de fantasias e teorias conspiratórias”, disse o apresentador Seth Meyers em seu monólogo diário do programa Late Night.
Meyers sabe o que é comunicação. Como ela vai permeando lentamente as mentes dos “coelhos”, corroendo e minando a realidade. O resultado é sempre terrível. É só ler o livro “A Força da Mentira”, da juíza Hadassa Ben-Ito (traduzido brilhantemente para o português por Miriam Sanger), que relata exatamente como a farsa chamada “Os Protocolos dos Sábios de Sião” foi criada, ganhou vida própria, influenciou gerações de pessoas e ajudou a criar a ideologia nazista que levou ao assassinato de 6 milhões de judeus.
A “mentirinha” antissemita (a de que os judeus do mundo se uniram para controlar o mundo), inventada nos porões da Rússia czarista, nunca foi totalmente destruída. Até hoje influencia muita gente, não importa quantas vezes já se provou que é mentira.
Da mesma forma, a “mentirinha” de Trump (de que ele venceu as eleições, mas que os democratas falsificaram votos para Biden) nunca mais vai desaparecer. Mesmo com ele fora do cargo, a partir de 20 de janeiro, o “mito” das eleições “roubadas” de Trump vai continuar por gerações, como um veneno que vai se espalhando internamente dentro de um corpo.
O que isso tudo tem a ver com Israel? Não se pode ignorar o fato de que o atual primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, passou os últimos quatro anos se gabando de sua amizade pessoal com Trump. Ele elogiou, enalteceu, celebrou e agradeceu Trump por realizar boa parte de suas vontades: de transferir a embaixada americana para Jerusalém a se retirar do acordo com o Irã.
Não está claro se Netanyahu apenas se aproveitou da clara tendência pró-Israel de Trump ou se realmente “gostava” dele. Não interessa. O resultado foram quatro anos de uma simbiose intensa com o governo Bíbi, que, segundo especialistas, enfraqueceu a posição americana no Oriente Médio ao deixar de lado qualquer tentativa de neutralidade.
“A parcialidade da administração de Trump colocou em questionamento o papel dos EUA no Oriente Médio”, acredita o Dr. Amnon Cavari, que dirige o programa de mestrado em Política e Marketing Político da Escola Lauder de Diplomacia e Estratégia do IDC Herzliya. “Os palestinos foram totalmente ignorados por todos esses anos. Joe Biden terá que reconquistar a confiança de muita gente, na região”.
Certamente, não se pode negar que coisas boas também saíram dessa proximidade entre Bíbi e Trump. Os Acordos de Abraão são o maior exemplo. Sem Trump e seus discípulos, principalmente o genro Jared Kushner, talvez não tivéssemos os acordos de paz com Emirados Árabes, Bahrein, Marrocos e Sudão. A posição de governos americanos anteriores era a de não ousar no que tange a relação de Israel e o mundo árabe. E Trump pensou fora da caixa. Não se pode negar isso.
Mas, no cômputo geral, o legado que fica da relação Netanyahu-Trump é o de quatro anos de promoção de uma visão unilateral da realidade: a de que a opinião da direita israelense e seus apoiadores pelo mundo é a única que importa.
Agora, depois que o ovo do trumpismo deu origem a uma tentativa de golpe de Estado, resta saber o que fará Netanyahu, que enfrenta uma nova campanha eleitoral (a 4ª eleição em dois anos acontecerá em 23 de março). Ele já condenou as arruaças em Washington, mas será que irá negar Trump, que claramente as incitou e alimentou ilusões que gente racista, extremista e antissemita como o da camiseta acima?
“Não acho que Netanyahu vai usar o nome de Trump depois de 20 de janeiro. Ele talvez não o negue, mas certamente vai evitar falar o nome dele. Não veremos cartazes de campanha nas estradas com fotos de Trump e Netanyahu juntos”, diz o Dr. Cavari. “Netanyahu vai enfatizar que sabe trabalhar com diversos líderes pelo mundo, incluindo Biden, para conseguir vantagens para Israel”.
Ah, e não podemos esquecer das fotos de bandeiras de Israel entre os golpistas americanos (não sei se foram muitas, mas vi pelo menos uma). A ligação de Netanyahu com Trump também levou a isso: à ideia de que Israel inteira apoia cegamente Trump e suas ideias. Uma Israel que, na verdade, é super diversa e nada homogênea, com uma esquerda latente, mesmo dividida, e 20% de cidadãos árabes. Uma Israel de verdade, não essa imaginação mentirosa que os inventores de fake news propagam, tanto nos EUA quanto no Brasil.
Aliás, essa ideia do apoio de israel convive incrivelmente bem com o antissemitismo. Alguns “minions” abraçam Israel por “apoiar” Trump. Outros odeiam judeus. Faz sentido?
Vamos esperar que o capítulo “trumpismo” seja pequeno no livro da Humanidade. E que seus apoiadores e facilitadores não causem mais danos a Israel e aos judeus em geral. Mas fique claro: o trumpismo não voltará para dentro da garrafa tão cedo e teremos que lidar com os ecos de sua ligação com o governo Netanyahu por muito tempo.